domingo, 30 de agosto de 2009

Rios

Elaine Pauvolid
Márcio Catunda
Ricardo Alfaya
Tanussi Cardoso
Thereza Christina Rocque da Motta




RIOS

coletânea de poemas
e
fortuna crítica




Ibis Libris
Rio de Janeiro
2003

SUMÁRIO

Donde Evade, de Elaine Paulovid, 5
Engenho Urbano, de Márcio Catunda, 34
Sujeito a Objetos, de Ricardo Alfaya, 61
A Medida do Deserto, de Tanussi Cardoso, 87
Pandora, de Thereza Christina Rocque da Motta, 121


DONDE EVADE
Elaine Pauvolid

Elaine Pauvolid é carioca, nasceu a 19/12/1970. Funcionária pública. Formou-se em Psicologia em 1995. Ingressou no curso de mestrado em Ciência da Arte na UFF, em 1996. Em 1998, estreou como poeta com Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela... (Imprimatur/7 Letras). Seu segundo livro chama-se Trago (edição artesanal da autora, 2002), prefácio de Gerardo Mello Mourão, foi lançado no evento ConVerso no Café, coordenado pelo grupo Poesia Simplesmente, no Café do Teatro Gláucio Gill.
A partir de 1999, tornou-se ensaísta freelancer e publicou resenhas no Jornal do Commercio, O Globo e Jornal do Brasil e na revista Poesia para Todos (Galo Branco) . Em 2000, passou a colaborar com crônicas para o Jornal da Tarde de São Paulo, na coluna Arte pela Arte de editoria de José Nêumanne Pinto, também como freelancer. Escreveu vários prefácios publicados. Participa ativamente dos recitais de poesia no Rio de Janeiro. Idealizou e organizou o Sarau do João do Rio, com apoio da livraria homônima, evento de periodicidade semanal, que englobava a prosa e a poesia.
Desenvolveu o projeto Novos Sentidos, que incluía recitais em diversas locações com o restaurante Xalan, no Catete e a Livraria Berinjela, no Centro. Idealizou e edita a revista eletrônica semanal de cultura, Aliás (www.almadepoeta.com/alias.htm), no site do poeta Luiz Fernando Prôa. Apresentou-se no Fórum Poesia da UFRJ, e no curso de italiano da mesma Universidade, a convite da Instituição. Participou, como contista, das coletâneas: III Antologia Nau Literária (Komedi, 2001) e VI Coletânea Komedi (Komedi, 2002), e das coletâneas de poemas: Poetas Cariocas (Ibis Libris, 2000); Santa Poesia (MMRio, 2001); Cadernos de Poesia (n.º 29, Oficina Editores, 2001), Terça ConVerso no Café (Grupo Poesia Simplesmente, 2002), Perfil 2003 (Oficina Editores 2203); Babel – Revista de poesia tradução e crítica (nº 5, Revista Babel, 2002); Revista Poesia para Todos (nº3, Galo Branco, 2001). Na Argentina, em 2003, foram publicados no jornal Nuevo Diario de Santiago del Estero, três poemas do livro Trago nas versões em português e espanhol e um ensaio crítico, que aponta a autora como uma das promessas da poesia carioca.
A convite do poeta Márcio Catunda, participa deste livro com poemas de seus dois primeiros livros e outros inéditos.

Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela...
(1997-1998)

AMANHEÇO

Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço

Amanhã eu começo isso.
Ela gritou de sua janela aberta
que mais parece
um precipício.


ABRA A SUA BOCA

Abra sua boca
e veja nela
os dentes roxos.
Perplexos, salientam-se.
Quero correr que nem eles:
Bem para fora e rápido!
Mas não dá.
Onde estou
não existe fora.

DEPOIS

As melhores dicas virão depois.
Esteja certo disso.

VERDES DE FUNDO

Era uma folha seca
jogada e transparente.
E no silêncio do frio
a voz dela recortava
palavras que eram gotas
em ciranda aberta
no nublado dos sons vãos.

Arrastada, ainda ouviu um som mais estranho
a vir por de trás da fonte.
Tentou encontrar a voz,
achou um estranho ser
de apenas um olho,
que não era na testa.
Levou a mão à boca, sorriu.
Ainda tentou escapar
das mãos peludas que a arrastavam.
Ainda viram alguns o rosto dela
Desesperado, que parecia
no fundo sorrir-me.
E eram olhos verdes de fundo.

CONCUBINA DE DEUS

Besta e cega correu muito.
Estava nua e os longos cabelos voavam atrás de si.
Diziam: “Está com o demônio!”
E não estava.
Deus a colheu para junto de Si
E a fez Sua gigantesca concubina.

A cor era sépia;
os cabelos, laranja;
os olhos, verdes;
o corpo, enorme e liso.
Sobre ele, véus azuis.

BRINDEI COM MÃO SERENATA O SONHO QUE TIVE DURANTE MINHA NOITE-ESTRELA...

Brindei com mão serenata
o sonho que tive durante minha noite-estrela.
E desta maneira, tive perto de mim
a melhor e mais clara história doce:
a de um homem idoso
que tinha nos olhos as novelas da vida.
O motivo eu não sei,
o que vi, é que ele o possuía.
E havia também violões,
que tocavam enquanto ele caminhava
sobre as nuvens,
todas brancas.

Trago
(1998-1999)

DEUS

Já faz tempo que desacreditei em Deus.
No entanto, nunca esteve tão longe
como só o que existe pode estar.
E por assim ter a distância,
abre-me Dele a falta ao peito.
Sei de explicações psicológicas, antropológicas,
li Lévis Strauss,
mas o encanto faz-me viva.
Deus não será isso mesmo,
Nossos espíritos imaginando?

BLASFÊMIA

Conjeturo o infinito,
vejo o abandono terrível em que vivo.
Para mim, nada importa das vidas dadas;
nada importa isso, absoluto.
Já deveria ter morrido, está bem certo isso em mim,
o que advém nada mais é.
Sussurro palavras mal colocadas.
E não se perceba o que digo,
ou soe como exagero.
Só me falta Deus apontar-me o dedo e gritar: “Covarde!
Vá, cordeiro de rebanho”.
Grito: Ensinai-me, pois, caminho.
Ele me mostra o Seu livro.
Vocifero minha boca-chama,
Ele Se defende com os braços gigantes.
Manda-me enfim à dor eterna;
eu regozijo.

IMPRUDÊNCIA VÃ

Desvirginadas inconstâncias se fizeram tolerantes para comigo.
Alcei, o quanto pude, meu destino,
desfiz-me.

Trago a noite,
a solidão forasteira,
o medo que se precipita
em horizonte líquido.

Trago toda miséria inspiradora,
trago-te.
Não chores,
que dentro de mim serás menos contente ainda, pois olhe:
( )

SILÊNCIO

Trago o silêncio do frio,
as trovoadas,
os precipícios,
os desesperos
para que jamais esqueça
o quanto temo
por você.
O quanto queria ter
mais perto.
E não tenho nunca.
Que importa tudo isso?
Nada.
Nunca fui boa em relações,
sempre perdi em todas as discussões.
Que mais posso fazer, senão ver de mais um as costas,
sofrer até morrer?
Mas não quer mesmo ficar
comigo?

ACABAR COMIGO
Mesmo os grandes homens só são verdadeiramente reconhecidos e homenageados depois de mortos.
Por quê? Porque os que elogiam precisam se sentir de algum modo superior ao elogiado, precisam conceder.
Clarice Lispector,
Perto do Coração Selvagem
A mais estranha sensação
repete-se incansavelmente,
um ente encravado em mim.
Penso em matar-me.
Como num samba
de Paulinho da Viola,
acabar comigo.

O ente cansado de estocar-me –
que me parece, os demônios também se cansam –
sem perceber, ouve comigo
frases soando enigmas.

Vejo o rosto de coração,
olhos rasgados de um país distante,
a mulher preocupada com os filhos.
Em me matar incansável, sub-reptício.
Escuto, decido, ao invés do tiro,
pegar um livro.

ESCREVER

São poemas o que tenho a lhe dizer.
Espero que me compreenda.
Ou se não compreender,
espero apenas
um poema incompreendido por você.

NÃO LHE PEDI NADA

Não lhe pedi nada,
nem que foste comigo,
nada.
Permaneço nesta cadeira de madeira, planando.
Enxuga teus olhos destas lágrimas.
Enxuga teus olhos destas mágoas.
Queres meu lenço mágico?

Interiores
(1999-2000)

AD VITAM AETERNAM

No espaço esqueço
que sou no tempo.
Num intervalo tento
alcançar a margem,
a sem limites.
Reescrevo-me
para saber-me
escrava fora de alcance.

CASEBRE DOENDO

Dentro de mim,
um corte frio e afiado
como navalha,
e é água,
que agüento
em desejo desafiado
a misturar-se em mágoa,
a estar invisível,
sob um manto
dum infeliz encanto
de inocente insensatez
sobre o muro alto d’altivez
inoportuna e cega.
Inapropriada entrega
dos olhos beijando corujas,
acenando morte,
instante que me cobre.

L’ESPOIR

Je suis triste,
inoportune
et beaucoup seule.
Mais je suis la femme
qui a de l’espoir...

Meu nome sobre um manto de carne,
morada do sonho
palavra inócua

...L’espoir de rencontrer
les mots
ou les morts.

DOER

Engasguei de dor...
“Qual?”
Mas era distante e guardei.
Sem fala,
aconcheguei em meu corpo,
cambaleante mãe
com o menino morto.
“Largue dele,
que já não sofre.”
Larguei.
Mas algo está errado...
Não largaria meu filho morto
nem por pecado.

VENTRE E CORTE

Laça-me a dor,
atira-me ao exterior,
destrói projeto anterior.
Intercepta faca, corte agudo, inferior.
Faz-me cair de joelhos
sobre os pedaços de espelho.
Aterrador!

Verbo vermelho,
final quem me circunda,
cruzando, bem mais assemelhado,
a dor imunda, que inspiro feito água fria
sendo a mesma brasa que sofria
O ventre calmo que a mim inunda.

CASTELO EM SENTIDO
Para Alexandre, in memoriam
Gostaria de olvidar
se não fosse meu tesouro guardado.
Guardo-o, sentinela de mim mesma,
diante do castelo onde passeia a lesma.

Sim, vejo
e não posso dar cabo dela,
pois sou o castelo
de areia e sentinela.
Não a esmague também por mim.
Espere que passe,
se introduza por fim.
Caberemos todos se não fizermos barulho.
Lesma sobre o rico embrulho:
– Quem me trouxe? Quem me trouxe?
– Surpresa?!
Duvida, inteira, a trupe.
Posso dormir tranqüila
antes de abri-lo.
Deve ser apenas um menino.
Durmo, acordo e vigio
por mais um dia
meu sítio imprescindível.

SOLIDÃO

Não sei dizer desta solidão
arrastada entre quatro paredes.
A outra perambula assustada.
Um cão filhote,
desconhecendo tudo
que não seja morte.

OLHO

Olhos não mentem.
Sempre dirão verdades, atentem.
Não pensem boas as mensagens lobas.
Sedentas de dentes seguem intuitos,
bichos terríveis, tudo que ouvem.
Em tudo que vêem
pureza jamais houve!

LÁPIDE

Tenho olhos que me cegam,
mãos que me pregam,
roupas sufocantes,
dedos que não tocam,
amigos que não vejo,
paixões que a alma não comporta.
Quem dera ser firme a porta...


Fio Tênue
(2000-2001)

DONDE EVADE

A menina dos cabelos longos
diz do limite de minha pena.
Sua alma de longe acena.
Solitária nunca mais esteja
a pintura que tanto canto enseja.

É apenas uma menina numa igreja
e que tem às mãos uma vela acesa.

Donde evade o som da minha letra
há um espaço insondável
e para cada pessoa se lança
onde, dia a dia, quase alcança
o lar onde nasce meu ser interno.

Tal mundo de silêncio e dano
em meu poema reverbera tanto,
como em mim também se cria
avesso ao resto, o ser de alegria
conhecido pelos meus tão queridos
sob onde paira o reles escrito
e para quem por meu amor e dor
quisera sempre ver proscritos.

DUAS VEZES

Dançam ao chão em desfile triste
as contas que do fio tênue desistem.

Voltas ao coração ornavam
de quem os de perto nunca amaram.

Rendo-me por fé à triste lógica,
aspiro a não sei qual vitória!

Por tanta dor por quem valia,
a, antes, aquinhoada mulherzinha
insiste em perguntar sabendo
que será da vida toda
feita da fé repousa?
Não responde e bem lembra
de tão cedo poder voar
os que não sabendo velejar,
náufragos, fraquejam,
roendo-lhe a fé a triste lógica
à primeira rajada do fero mar,
erguendo não sei qual derrota,
querendo não sei qual rota.

À SOLEIRA DA PORTA

Não sei do fado
deixo-o sem glória e saio.
Piso na vida com tal zelo
que não nego os que me chegam
nem tampouco me cegam ódio e medo.
Contraditória e calma
varro a soleira da porta
pensando nos meus erros,
com humildade caseira
e plenitude idólatra.

NO EXIT

Ouço gritos de desatino
dum lugar estranho

Do qual aproximo
Siempre una otra sin engano.

O prazer em mim semeia
aparência tão alheia
que contado mi secreto
Plantada festa aproveito

Olhos descalços são meus pés
e o sussurro dime: prossegue.
Prenuncio algo fúnebre y muy célere:
sangrentos pés por de violetas descalçados
pela mulher do azedume
toda dor marcada em trapos
“Tenham dó da pobre, arre” – ouve
sem linha de graça sobre o rosto desenhada.
“Saiam da rua para que a à-toa passe”.
E passa rindo,
deixa nu o hálito horrível.
Cheira à placenta; y espera
donde vieram os suores
mutilados por sus frestas,
rir-se um pouco mais funesta!

Estou atrás duma pedra
Com los perros a cena olhando.
Ela não me pode mirar,
Se lo hacesse faria llorando.
Então, calço los sapatos
dou meia volta e lhe abro mil braços.


Leão Lírico
(2002-2003)

LEÃO LÍRICO

De uma porta sairá o leão,
passado e presente unir-se-ão.

Quem nascido sob este signo
trará o cetro na mão.

Este livro não será lido nem escrito,
será intuído pela graça do leão.

Todos homens são da mesma cepa
e, na terra, unir-se-ão
todos que trouxerem a marca do leão.

Mares e estrelas transmudar-se-ão,
de forma e leveza não mais se constituirão.
Este é o livro que o leão trará na mão.

Este livro não será lido nem escrito.
Será intuído do lírico leão.

Povos em fome não se unirão
antes de reconhecerem o lírico leão
que virá não mais para remissão
e sim para os filhos em rendição.

PALAVRA

Para lavrar a terra
é preciso palavra.
Para colher sementes
é preciso a palavra.
Para ter amor, deve-se saber palavra.
Para ter quimera é só dizer: palavra.
Ela vira um mundo, uma vaga;
o que quiser que ela traga.
Mas, o dinheiro, meu senhor,
este nunca paga
a chama que é palavra.

LETRA E
Para Ferreira Gullar

Eu no meio do mundo
E a vida no meio de tudo
Eu escrevendo
Eu morrendo
Eu mexendo
Fazendo no meio
a vida em tudo
estou correta
estou deserta
estou cheia
estou média
estou com medo
estou sem veio
estou seca
estou dizendo
no meio do mundo
a vida no meio de tudo
estou vendo
o meio de tudo.
Eu nomeio
a vida em tudo.

VERÔNICA

Lavada em vertigem
a varanda da fuligem,
não da altura pouca,
perto da fé repousa.
Num hábito, olhos além da porta,
a verônica acena
levando a alma trêmula
a agradecer a Ele
a besta tombar à areia,
ao som dos motores em Guadalquivir,
marulhado dos leques em Granada,
dor da virgem, touro morto.
Ave Sevilha,
peço-lhe em prece aflita
que os meus erros
essas águas lavem.

AO QUE LÊ

Não sei que argumento presencio
nem o que tange só a margem,
sei que em nada insisto
senão em severo alarde.

É que grito pela vida
que me toca e arde.
E se tiveres um tempo
convide-me quando jantares.
Estarei contigo, presença infinita.

Confio no seu elo,
na sua esfera,
no seu conflito.

DESCARTE

Não conto comigo mesma,
conto como vou comigo.
Às vezes fria, noutras amiga.

Se não assim, faço por mim
o que por ninguém faria.
Faço por mim o desacreditar perene.
Tudo em descuidado tranqüilo.

Sei que existo de certa forma,
No entanto, cogito
que a quimera de infinito
não terá fim enquanto restar
um fio de dúvida em mim.

DOS MORTOS

Certos enterros são concertos.
O morto vai distante,
em forma intangível, em nós se encerra.
No concreto
que o coveiro sobre a morte acerta,
vamo-nos um pouco
em nossas pétalas.

ALÉM DA REALIDADE TANGÍVEL

Sou reflexo do olhar
por onde vejo.

FORÇA DE DEUS

Nenhum mal entrará em minha casa.
Se entrar, terá o dorso lanhado
pelo fio de minha espada.
por muita luta
por mim perpetrada
por ele engendrada.
Não sem medo rodeada
em Deus confio, não temo nada.
Quando tudo se tiver cumprido
a calma restabelecer-se-á.
Ainda mais forte restará
a fé a que confio minha casa
e só dormirei quando estiver deitada.

SE TE POVOAS ALVURA

Se te povoas alvura
não conheces a bruma escura

Vai, com ela dorme
em chão de raízes.

Este é o sonho, a lucidez...

Vai amigo,
dorme tranqüilo.

Espera da alvura que te arde
a missão reta de levar-te.

PELOS OLHOS QUE ME VÊEM

Um homem em túnica trajado
encontrei ao cume duma escada.
Outros dois, no mesmo estado,
ao centro duma sala
e diferentes brinquedos
distribuídos por pessoas
que antes de mim pareciam ter chegado.
Entre tais as primeiras criaturas,
os dois homens circulavam.
Mestres ou capatazes,
a física e a lógica explicavam
aos seres que aos jogos se empenhavam.
Enquanto a cena admirava,
por quatro mãos fui tomada.
Ajoelharam-me, um espelho mostraram-me.
Por meus olhos enxergava
e por mim mesma era olhada.
Após a experiência nova,
puseram-me levantada.
Desde então, ser vista e ser olhada
pelo mesmo ser o que sou agora,
não duvido e, por realidade,
este estado tomo
que, senti-lo, é o único modo
permanente até agora.

CRIANÇA DE 70

Quando me fiz poeta,
não soaram os sinos,
a cidade restou quieta.
Mas, uma porta foi aberta;
e sem alarde, mui singela,
achei-me de novo em idade muito tenra,
olhando os canteiros e a noite
muito atenta.
Segue em frente, agora, criança de 70!

GOZO

A dor do gozo um fio tênue separa,
com amor e gozo minha alma brada
não pela dor, que é tão calma
nem pelo terror, que a lava fétida
de derredor me causa.
É amor ao resto, vontade de comunhão,
é da exaltação de Deus
que minha alma fala
e minha boca cala.

ESPADAS

Meus livros são espadas exangues.
Imaculadas enquanto não lidas
as espadas querem abrir-te.
Habitue-se, amigo.
Habite-me.

POR MISERICÓRDIA

Por traição de ti cantas teus versos,
Conta os teus segredos
por eles e para livrar-te deles.
Que serás após? Teu próprio verso?

Nunca serás um outro a contar de ti
em utopia generosa de viver!
Que outro existiria se às tuas costas
é que ardem as verdades
e é teu sangue que borda
o que trazes em páginas?

Trai, evola....
Só o poema te salva,
qual alimento de alma receosa
do eco de uma outra voz desejosa.

Por misericórdia hão de descobri-te
outros iguais a ti.
E clamas por isso
a cada vez que tremulas
as alvas bandeiras tuas
a que chamas de “teus livros”.

A música cuja letra não é tua
é a mesma que saúda
inocentes sem traição alguma
e é isso que te salva
e transforma teus berros
em versos claros
não mais a chuva
que teus medos circundavam
em ciranda macabra
de solidão e bruma.

BANCO DIANTEIRO

O carro do meu avô – que nunca teve carro,
era mais antigo,
que o tempo desta lembrança.
E nem tanto que fizesse do carro uma geringonça.
Ainda existiam muitos daquele jeito,
o banco da frente, todo inteiro.
E eu ia com eles,
meu avô de um lado, meu pai do outro.
E deveria caber ainda minha prima,
que era sempre a mais pequenina,
cabia em qualquer cantinho e sempre sorria.
E nós íamos por aquele caminho
quase vindo.

INFÂNCIA COMPARTILHADA

A infância de meu pai foi também a minha.
Contou-me aventuras que até hoje minha alma aninha.
Gringo era o apelido da criança esguia –
pensei ser russo até outro dia.
De camisa sempre aberta
short e sapatos da escola muito gastos.
Subia cada esquina à procura da pipa
cuja linha trazia envolta aos braços
lassa e vasta como é a vida
como são as lembranças
como são todas as crianças.

FORTUNA CRÍTICA:

A poesia de Elaine pode ser percorrida com uma senha permanente: a busca da memória, não apenas e não tanto no passado, mas no quotidiano, onde ela vai construindo, dia a dia, sob o signo misterioso da saudade de hoje a saudade do futuro, em que o presente constrói a saudade do passado. Pelos caminhos de seus versos passam todas as direções do mundo, as gatas de cios clamorosos nos telhados, as crianças perdidas, azuladas de fome e de frio, as prostitutas, os caçadores de dinheiro, a bacanal dos pré-santificados e a presença perturbadora de sempre: aquele Deus que insiste em aparecer e ser invocado.
Gerardo Mello Mourão, 1999

Vista em seu conjunto, a obra de Elaine Pauvolid não convida à entrega, mas sim à busca crítica e inteligente do tênue fio que permita o “religare”, a descoberta da própria voz. O que chamamos de “Ser” talvez não seja mais que um sonho. Mas quem sabe com toda certeza o que é exatamente o sonho, qual o seu mais profundo e íntimo significado?
Ricardo Alfaya, 2002

Elaine nos traz encanto e desespero, um humor tingido por um exercício lúcido de autoderrisão, perplexidades e surpresas e, por vezes, uma atmosfera desoladora que lembra um Trakl; uma jovem poeta sem idade, madura, travessa e graciosa em seu domínio da palavra poética.
Simone Ostrowski, 1999

Uma poesia sem começo nem fim é o que permanece depois da travessia do território demarcado pelos versos de Elaine Pauvolid. Em torno de um núcleo imperceptível gira um universo onde sentimentos pessoais se reconhecem e se estranham, entre aparência de conceitos e palavras de sentido mutável. Todos os poemas fazem parte de um mesmo conjunto e a ordem pode variar com plena liberdade de leitura.
Wilson Figueiredo, 2000

ENGENHO URBANOMárcio Catunda

Márcio Catunda Ferreira Gomes nasceu em 22/05/1957, em Fortaleza, Ceará. Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Ceará, em 1979 e em Diplomacia, pelo Instituto Rio Branco, em Brasília, em 1985, ingressando na carreira diplomática. Cursou a Faculdade de Letras (CEUB), de Brasília, de 1986 a 1989. De 1991 a 1994, residiu e trabalhou em Lima, Peru, como secretário da carreira diplomática, na Embaixada do Brasil. De 1994 a 1997, desempenhou a função de Cônsul Adjunto no Consulado Geral do Brasil em Genebra, Suíça. De 1998 a 2000, serviu na Embaixada do Brasil em Sófia, na Bulgária, onde exerceu a função de Conselheiro Comissionado. Escreveu e produziu as seguintes obras literárias e/ou musicais: Poemas de Hoje, 1976 (com Natalício Barroso Filho), Fortaleza, CE; Incendiário de Mitos, poesia. 1980, Fortaleza, CE; Navio Espacial, poesia, 1981, Fortaleza, CE; Estórias do Destino e a Pérfida Perfeição, contos e poesia, 1982, Fortaleza, CE; O Evangelho da Iluminação, poesia, 1983, Fortaleza, CE; A Quintessência do Enigma, poesia, 1986, Brasília, DF; Purificações, poesia, 1987, Rio de Janeiro, RJ.; O Encantador de Estrelas, poesia, 1990, Brasília, DF; Sortilégio Marítimo, poesia, 1991, São Paulo, SP; Los Pilares del Esplendor, poesia, 1992, Lima, Peru; Llave Maestra, poesia, 1994, Lima, Peru (com três poetas peruanos); A Essência da Espiritualidade, ensaios, 1994, Lima, Peru; Poèmes Ecologiques, poesia, 1996, Bellegarde, França; Ânima Lírica, CD de poemas musicados, 1997, Genebra, Suíça; Anthologie Sonore, CD de poemas recitados em três idiomas, 1997, Genebra, Suíça; Mário Gomes, Poeta, Santo e Bandido, biografia, 1997, São Paulo, SP; Rosas de Fogo, poesia, 1998, Rio de Janeiro, RJ; Água Lustral, poesia,1998, Rio de Janeiro, RJ; Estância Cearense, antologia poética, 1999, Fortaleza, CE; À Sombra das Horas, antologia (poemas traduzidos em búlgaro), 1999, Sófia, Bulgária; Na Trilha dos Eleitos, ensaios, (volume I), 1999, Rio de Janeiro, RJ; No Chão do Destino, poesia, 1999, Vitória, ES; Crescente, poemas musicados, 1999, Sófia, Bulgária; London Gardens and Other Journeys, poesia, 2000, Sófia, Bulgária; Verbo Imaginário, antologia (CD com poemas lidos pelo autor), 2000, Sófia, Bulgária; Noites Claras, poemas musicados em CD, 2001, Sófia, Bulgária; Na Trilha dos Eleitos, ensaios (volume II), 2001, Campinas, SP; Mística Beleza (poemas musicados), 2003, Brasília, DF. Participou dos seguintes movimentos culturais: Presidente do Clube dos Poetas Cearenses em Fortaleza, 1975. Fundador do Grupo Siriará em Fortaleza, 1985; em 1982, quando residiu no Rio de Janeiro, freqüentou o Sabadoyle, círculo de reuniões, onde conviveu com Carlos Drummond de Andrade e outros escritores famosos. Em 1992, fundou em Lima, Peru, com os poetas peruanos Eduardo Rada, Regina Flores e Eli Martin, o grupo REME, que organizou recitais e publicou livros no período de 1992 a 1994; em 1997, participou em Genebra, Suíça, da Associação de Escritores Genebrinos. Colaborou em diversos periódicos, tais como a Revista da Academia Cearense de Letras, os jornais O Povo, Diário do Nordeste e Tribuna do Ceará, de Fortaleza e Correio Braziliense e Jornal de Brasília, da Capital brasileira, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro e no Suplemento de Minas Gerais, além de outras publicações independentes ou alternativas, com cujos editores mantém ativo intercâmbio. Nesses locais, conviveu com artistas, escritores e intelectuais, tendo cometido a ousadia de escrever e publicar textos de poesia nos idiomas inglês, francês e espanhol. Está atualmente escrevendo o longo poema épico, intitulado De Todas las Histórias, la História, sobre a História de Espanha. Apaixonou-se de tal maneira pela Espanha durante as vezes em que visitou o país, que decidiu, há cerca de três anos, tornar-se um hispanista. Lê tudo o que pode sobre a civilização espanhola e resolveu escrever, com grande encantamento, no próprio idioma espanhol, a sua versão da fascinante história da Espanha. Seus livros retratam experiências vividas em outros países, porém as cidades de Fortaleza e Brasília exercem influência em sua poesia. Na primeira, nasceu e começou a publicar, em 1976. Entre outros temas existenciais, líricos, sociais, românticos, satíricos, a terra cearense o inspira sobremaneira, com o mar esverdeado de José de Alencar, o sol intenso que ilumina e aquece o solo, e uma gente muito simpática. Na segunda, viveu cerca de dez anos de sua vida, a partir de 1984, quando entropara a carreira diplomática e passou a trabalhar no Ministério das Relações Exteriores.

A GÊNESE

Sete graus de latitude Sul,
sob o Trópico de Capricórnio
e, das chuvas da Serra do Mar,
nasceram baías, lagunas, mangues,
restingas, altitudes, florestas.
O imigrante fundeia na barra, estabelece a feitoria,
um porto no Morro do Castelo
e estaleiros à margem do recôncavo.
O Capitão-mor inventa os destituídos.
Soterra-se uma lagoa, brota o Largo da Carioca.
Nasce o Passeio Público das águas do Boqueirão.
Ergue-se o Aqueduto dos Arcos no centro do poliedro.
Passa o povoamento pela Rua Uruguaiana,
além do Campo de Santana.
O aglomerado na planura
povoa Cosme Velho, São Cristóvão, Tijuca,
funda a Capital das cinco Freguesias!
O primeiro bonde germina ruas e casas,
invade o vale do Catumbi.
O Túnel Velho penetra na montanha,
drenando avenidas até às praias oceânicas:
viadutos e aterros de mangues
extrapolam limites administrativos.
O negro sai da senzala, sobe o morro,
multiplica favelas nos penhascos.
A cidade ergueu-se em cúpulas de letreiros:
tecidos de Bangu, estação de hidroaviões.
Pórticos, chafarizes, conventos,
a Colônia dos Psicopatas, Nossa Senhora da Penha,
Bebedouro Antigo e Fazenda Real.
Um mar de cimento e vidro
brotou num deserto de pedras:
cratera de ferocidade.

URBANIZAÇÃO

Canto a cidade que se espalha em pânico,
corredores vazios, escadas delirantes.
Canto a noite feita de aromas,
música visual.
Canto a cidade violentamente epidêmica,
explosiva, visceral, epidérmica,
artérias abertas à enxurrada dos carros,
ao dinamismo das engrenagens.
Cidades dos monturos e redomas de medo
e das turbinas asfixiantes.
Canto a cidade das bailarinas adolescentes,
o esgalgo passo na ponta dos pés.
Bailarinas ariscas,
de olhos inquietos no tumulto,
tingidas de sol, cabelos de seda,
sorrisos que enfeitiçam,
bailarinas que carregam corações.
Canto a correria desvairada, a multidão sem perspectiva...
A dança descomunal dos veículos,
algazarra implosiva de radiações.
Urgência de amor emerge como as águas,
na cidade de rebelado amor.
O caos! O turbilhão do transe na encantação da noite!
Transtorno de buzinas, rugir de motores,
ranger de freios.
Estou indiferente aos latrocínios,
ando enfeitiçado pelas bailarinas.
Ó vampiras! Ó tragédia burguesa!
Desdenho as madames e seus cachorros,
desdenho o policial que, em frente à lanchonete,
alisa o coldre do revólver.
Ó escória da pátria!
Ao esgoto segue o exilado da vida,
desnutrido, violentado em fábricas e favelas,
em antros de expiação, na escala social da miséria.
Passam crianças esmolando o que lhes pertence.
Por avenidas apavorantes,
luto contra a desesperança dos semblantes
e, além da brutalidade e da indigência,
ergo meu canto como facho na noite do mundo.
Candeia dos ventos no Rio de sonho,
espuma de pálpebras molhadas,
a cidade se desfolha num desejo de viver.
Meu coração canta a cidade na voz do mar.
A cidade e seu destino nacional.
Cidade das vicissitudes do personalismo brasileiro,
cidade de todas as peripécias.
Miríade, confusão, mar e fantasia!

CONFISSÃO

Se eu subisse de joelhos a ladeira da Glória,
não expressaria o meu apego,
cidade mais minha
que de quantos no teu solo beberam luz!
Meu primeiro respiro de alumbramento.
Noites que eu passasse mirando o mar
não traduziriam todo o encantamento,
beleza cheia de milagres,
a água quieta, fitada longamente,
os morros acesos,
as montanhas recortadas no azul.
Perplexidade de delicioso turbilhão
que em mim suscita maravilhas!
Verso meu, lúcido e diminuto,
sabe apenas enumerar prodígios:
aquele pedaço de praia entre Glória e Flamengo,
as mulheres exalando sedução,
a Gávea – mirante dos deuses,
o Corcovado – apoteose do Cristo.
A voz embarga o que a alma canta.
Absorto diante do claro azul,
mirando o infinito abraço de água e céu,
seduzido pelas garotas, não só de Ipanema,
mas de todo o litoral de feminina curva,
sei apenas adorar todos os matizes
e sei caminhar nas ardentes noites,
mirando as planícies de luz.
O alto Cruzeiro aceso, estância de delícias,
sei recordar e, entre acalantos,
nos torpores de fevereiro,
remansos e logradouros,
existiu outrora uma Galeria e um Pavilhão.
Já não há pacifistas na Cinelândia,
mas o teu sussurrante nome,
que agora recomponho, em fragmentos de êxtase,
configura-se na Avenida Rio Branco, fervilhante,
nos portais da Biblioteca,
algazarra e tumulto em toda parte,
ar de bolero em Copacabana,
calçadão de todos os Brasis.
Rio de amendoeiras e cascatas sussurrantes,
Rio abismo verde sobre o mar,
esquecer-te não sei.

O MIRANTE DAS PAINEIRAS

Estames em êxtase,
cheiro de própolis no silêncio mineral,
entre deleites sobrenaturais,
pletóricas, gritam as papoulas.
Do alto reino florestal,
inserida em cratera expansiva,
abre-se a cidade em magnitude:
claros espelhos.
Lagoa submersa,
ornada de muralha circular,
oásis onde o caminhante bebe alento.
Arejada entranha vegetal, arco de obscuro cristal
que derrama fluido alumbramento:
transcendência viva.
Lagoa ornamentada de prédios brancos,
superfície de ônix, polida:
inundação diamantina.
As ilhas emergem do céu,
onde o olhar, em busca de horizonte,
contempla os edifícios arautos.
Sombra enternecedora entre montanhas.
Anjos imóveis sobre a dimensão visível.
As plantas me acenam com mágica clorofila.
Álgida perspectiva,
verde vertigem,
mística miragem.

A IGREJA DA PENHA

Sob o rochedo, as favelas acendem casas amontoadas.
O clamor das vivendas sem reboco, tetos de zinco,
panos pendendo dos arames.
Cingida pelos páramos circundantes,
a igreja – altar acoplado à pedra.
De um lado a baía, serena planície, várzea colorida.
Ao longe, concreto policromático de edificações,
a insígnia da Ponte coroando a perspectiva.
Nas contingências, a miríade:
vilarejo gradativo agarrado à encosta,
montes recobertos de tetos desbotados.
A montanha cravejada de casebres:
alarido de cães, gritos de crianças, batucadas, fogos de artifício.
Fragmentada de violência,
a favela é um vulcão de expectativa.
As torres captam vibrações cósmicas.
Relíquia pousada sobre a tenebrosa erupção,
em cujos pés descansam paroxismos.
Dois extremos revelam faces do paradoxo:
esplendor e miséria.

JARDIM BOTÂNICO

De repente, me descubro navegando:
o olhar fluindo em verdes flâmulas,
o círculo da vitória-régia,
hóstia de clorofila no santuário floral.
Súbito bando de aves me chama
num formidável estardalhaço.
Um esquilo risca o chão, dá cambalhota no esbelto tronco.
Serenos silvos estridulam no ar,
imagens sonoras, rumores de vida,
ressonâncias no aroma,
traços auditivos delineiam a alma do bosque.
Na sombra úmida em que me infiltro,
passeio, irmanado às folhagens.
Lá fora, os neuróticos,
Atormentados, fogem vorazes,
com medo dos filhos da noite,
com medo dos trovões ambulantes.
Os demônios invadiram a cidade,
mas, entre aladas copas,
cajá-mirim junto ao córrego abraça jatobá,
vigorosamente inclinado,
com pau-d’arco-roxo, esgalgo e solidário,
crescendo paralelo: graciosa fraternidade.
Bambu-bengala, espalhafatoso,
exibe galhos-tentáculos de franzinas folhas.
Perfilam-se os leques-guardiães,
cingindo as margens lacustres.
Houve tempo em que tudo era perfume.
Uma nuvem de sufoco se aproximou,
mas o silêncio refaz o sentimento.
Silêncio fraterno sobre a floração,
grandeza de escarpa de finas torres.
Em córregos e relíquias de pedra,
deposito a lápide do meu poema inaugural.
Lá fora, rumores e assombros.
Aqui, murmúrio d’água e clareira.

VENERAÇÕES DO LITORAL

Canto os revérberos de janeiro,
o límpido diamante das manhãs:
os verões e os perigos.
A tarde aziaga na despedida de um filósofo,
a noite de utopia em que Vinícius de Moraes
hipnotizava as mulheres.
A manhã em que li “Para Além do Bem e do Mal”,
meu primeiro alumbramento filosófico.
Aquele clássico no Maracanã,
a névoa de pó-de-arroz sobre as três cores...

Percorro em delírio a orla do Leblon,
a cidade se descortina em sinuosas simetrias.
O dia claro suscita lembranças,
a música me conduz a outros momentos,
horas de plenitude se avultam na contemplação.
Uma peregrinação à Barra da Tijuca,
quando o shopping ficava no areal...
Meus poemas inconclusos, plenos de expectativas...
No porto que se alonga nos faróis até Niterói,
o transitório dom da água.
Coração menino aprende a olhar as ilhas,
as montanhas traspassadas de paredes,
os edifícios do Flamengo, o oásis do mar,
os ônibus desabalados, as mais belas moças
de coxas de pluma e bundas de duna.
Vento na tarde, barulhos e o céu nublado.

Outros idílios se configuram:
espuma florida onde a pedra invade o mar,
o todo orgânico de florações cósmicas.
Enigmas que imagino no entendimento puro.
O mar se reclina num leito de flores,
ofertando as pétalas do instante.
As mulheres, lábios de fruta, olhares magnéticos,
suscitam meandros de volúpia,
rio de amor caudaloso,
ardentes contornos, faíscas refletidas na água,
estampa de musgo e algas.
A paixão no movimento dos quadris,
as axilas que febricitam fagulhas eletromagnéticas,
um grito no âmago do flamejante olhar.
Há ternura e fogo no semblante das mulheres,
fogo e música embriagante,
saliva, língua, cheiro, tato, ânsia e entranhas.
O incêndio de tudo: glândulas, sangue, alma e paladar,
farpas de desejo na opacidade das grutas,
qualquer coisa de selva e desvario,
enseada, areia de leveza,
o tempestuoso céu.
O amor evade-se em seu ergástulo,
decorre em manancial de sonho,
antípoda dos encantos.
O tempo atrita com a ansiedade
na plataforma de sonoros matizes.
Mágicas gradações na visão que se alumbra.
As esculturas de Deus procedem da colheita de transparência.
Escorrem fervores, cujas alegrias, na vastidão, celebro.
Não becos de sofrimento,
nem despenhadeiros de terrores.
Celebro as carícias da vida,
as meninas da noite pura,
a doçura fremente do litoral,.
as venerações dos jardins marinhos.

ODE À PRAÇA XV

Súbito enlevo nas branduras do mar.
No Portal de Niterói, o idílio da barca.
Viajo aconchegado à calma de outrora
como em outros passeios.
A tarde transborda.
(Na chegada, um bêbado salta à margem do porto
e toma um banho de óleo.)
Súbita reminiscência:
o ônibus encalhara em São Conrado.
Vieram as alvíssaras.
Uma noite, a cidade inundou-se de aromas.
Era a tessitura de um corpo feminino,
o aconchego de sensações extremas,
o perfume do incenso de cereja,
olhos sensuais e o gosto de aventura...
A volúpia de um sorriso,
a voz do enternecimento,
relva que dorme na tarde...
Mas era da Praça que eu falava,
a Praça XV de Novembro,
onde canto, entre tumultos, um só acontecimento:
a vida que pulsa em mim
e celebro todos os acontecimentos:
a flora brasileira dissolvida em triunfos,
escarpas, arco-íris, acauãs, aroeiras,
biguás nas acrópoles relvadas,
cardumes nos portais aquáticos,
rouxinóis e beija-flores nos ipês,
sabiás em sombras de araçás.
Toda a magia florida
e o perfume de almíscar no colo das mulheres.
Além do rochedo de talhadas simetrias,
o mar precipita a vertente.
Observo o rito audaz das ondas,
sinto o despojamento do mar.
Isto posto,
proclamo a República Lírica do Brasil!

PERFIL DA CIDADE

Os becos virando túneis,
estrondando sinais de vida e água...
A Rua Senador Dantas com hotéis de naftalina,
os Cafés com ventiladores estridentes,
chorinho nas noites da Lapa,
atravesso o beco dos Poetas de Calçada
e caminho entre aberrações e sortilégios,
entre espasmos, paroxismos, pesadelos e obsessões.
Cidade armada, povo faminto pelas ruas,
arrancando à bala o patrimônio alheio.
Cidade maculada pela injustiça social.
O instinto extirpando a injustiça.
Gente dormindo nas calçadas,
tomando banho nos esgotos...
Tiroteios fechando ruas, balas perdidas,
os automóveis perfurados,
o sangue das vítimas desgraçando tudo.
Bandidos fugindo em direção às favelas.
Sujeitos de altíssima periculosidade
passam pelas calçadas impunemente.
Agonizam com tiros o sono inocente,
cavam covas para futuras vítimas.
“Uns tão ricos e outros humilhados, descalços”.
Trata-se da competitividade da economia, escrevem os cínicos.
O povo pede emprego e comida,
200 tiros atingem a Prefeitura,
ninguém sabe quem os disparou.

COSME VELHO

O ônibus transitava pela Rua Senador Vergueiro,
parava diante das palmeiras do Largo do Machado.
Árvores de memória, longilíneas, diante dos edifícios,
resistem à invasão metálica.
Contemplo prédios e mansões,
o olhar na Rua das Laranjeiras como outrora,
nos âmbitos residenciais:
jardins, pátios, samambaias nas varandas.
O Colégio São Vicente de Paula
acende a aura de um momento...
Despontam edificações evocativas,
a Rua Rumânia, de encanto medieval.
Não sumiu na fumaça nem nos barulhos de motores
a nostalgia do livro da vida,
nostalgia do tempo em que as pessoas
se olhavam sem medo
e não havia esse cheiro de mijo nas calçadas
nem temor de balas fratricidas.
Caminho com o simples objetivo de viver.
Ver infiltrações de luz entre os paredões de cárcere urbano,
viver a liberdade de ser o que sou.
Além do tumulto dos carros,
além do Largo do Boticário,
a cidade e seu gosto de mistério:
floresta, murmúrio d’água, casas incrustadas na montanha.

PRAIA VERMELHA

Clareira de estio envolve o círculo de pedra.
Em diáfana dispersão, alada vertente,
o mar, laguna verde azul,
passeia nuvens, matéria celeste.
Na pequena praia, represada entre montanhas,
o campo líquido se reclina
e o mar, lago aprisionado entre ilhas,
viaja na transparência ondulada.
O espírito vislumbra as correntes em frêmito,
as ondas que cantam,
tangendo liras de espuma no arco das pedras.

INSTANTE NA URCA

Minha solidão, os barcos, a inquietude do mar
e o tempo nebuloso...
O frio insólito de setembro,
essa angústia dos carros na rua estreita...
Mas, ao menos, a perspectiva é de alumbramento
e, em mim, a visão dos prédios é um arco-íris,
com a esperança de um tempo que se reconstitui.
Que esse desejo de sol me aqueça o gelo interior
e derrame azul na moldura do relevo.
(A cidade se descortina em sinuosas simetrias.)
Aves do céu, trazei os fulgores do dia!

SANTA TERESA

Subo aos mirantes.
Súbito horizonte se oferece ao olhar:
o mar envolto em névoa, recortado pela Ponte,
as ilhas veladas na distância.
Esqueço que a cidade está em guerra.
A presença de policiais com metralhadoras
me recorda que o mundo é feito de forças antagônicas.
Passa o cortejo armado
e o crepúsculo me devolve a beleza.
As primeiras luzes brilham nos artefatos da costeira.
Faroletes vacilam nos tetos das favelas.
E além, o próprio mar desaparece no outro mar,
na profusão abstrata da perspectiva.
Lá vem o trenzinho!
Salto dentro o veículo primitivo.
Formidável trepidação!
A engrenagem parece na iminência de se despedaçar.
Sinuosidades do movimento declinante.
Serpenteia o bonde entre vivendas antigas,
mágicas mansões de outrora.
Percorro dois séculos em alguns minutos.
No trajeto, viagem nas estâncias do tempo,
a emoção de cruzar os estreitos arcos.
(A altura é mais do espírito que da sensação física.)
Arqueologias do sentimento.

MÚSICA NA CINELÂNDIA

Um telão transmite na praça imagens do balé francês.
Na Cinelândia, ao lado da estátua de Carlos Gomes,
a platéia desfruta das antífonas,
apreciando o malabarismo dos bailarinos.
Na noite de concórdia que se ilumina,
a música envolve os expectantes.
Os mendigos loucos dançam na praça,
girando sincronicamente em ritmo alucinante,
e as crianças pobres correm num desvario de alegria.
Os loucos estão lúcidos e os bandidos nos deram trégua.
Nesse instante de quietude,
os guardas descansam
e a orquestra devolve o céu à terra,
refaz a aliança de Deus com o homem.
E os loucos, lúcidos e felizes,
esquecidos da própria calamidade,
deixam-se penetrar pela sinfonia.
Lavando-lhes os andrajos da desgraça,
embalando os espasmos da inconsciência,
nesse momento de alívio,
a música embalsamou as chagas
das mãos rotas de pus e sangue.
Por minutos, alegria e fartura aconteceram.
A louca frenética sacode o corpo em síncopes,
praticando absurdo exercício abdominal.
Um velhote, agitadíssimo,
brande metais nas mãos convulsas, intensa velocidade,
em uníssono com o crescendo sinfônico.
Por instantes, o guarda não precisa advertir-lhe
de que não atire pedras aos passantes.
E o próprio guarda não pensa em lançar mão do revólver.

NÉVOA NO PÃO DE AÇÚCAR

Flutua o Cristo sobre o convés do oceano,
guardião dos pântanos da Terra.
Cavalga filigranas nas águas movediças,
púrpura na transfiguração dos contornos.
Na azulada sombra em que se dissolve a horizontalidade,
o Cristo voa sobre prédios e montanhas impalpáveis.
A cidade vista das alturas, permeada de névoa,
perspectiva em profundidade,
mergulha no mistério.
O crescimento das ondas e a textura da distância.
Quebrantos ecoando em mim.
Perplexo ante os abismos do mar,
ponho a alma na intimidade dos enigmas,
nas latitudes transbordantes.
Derramo soluços nos pórticos invisíveis,
sobre o manto da miríade.
Do andaime propício, sobre o dólmen opulento,
eclode o cilindro portentoso,
colosso erguido na face do mar.

VISTA DO CORCOVADO

Luz sobre a perspectiva que se expande,
visão das dimensões infinitas.
Vertiginosa profundidade.
A exuberância pigmenta todas as distâncias.
Vastas cintilações.
Na translúcida sombra das águas,
oscilam sinuosas linhas multiformes.
O mar, provisão de intensidade,
com sua têmpera indômita de tremores,
reverencia o Deus humano
– turbilhão de voragem.
Olhos imersos nas flores da torrente,
o lábaro de acalantos:
matizes de pérolas emergem do limo.
O mar é um milagre,
transige a trajetória centrífuga,
reclina-se sobre as ilhas e as colinas
– criaturas fantasmagóricas,
talhadas na dispersão polifacética.
Prismática evasão de claridade.

NOITE NO LEBLON

Não há flores no Jardim de Alá,
mas nas imediações do canal
entre Vieira Souto e Delfim Moreira,
a lua acende as esquinas,
tinge de violeta os lábios das mulheres,
prateia as ruas onde a paixão da noite se fez roxa.
Sob a lua púrpura de perfumes afrodisíacos,
entre as árvores de copas luminosas,
as pupilas embruxadas pela paixão
e a estampa esmaltada dos bares...
Estonteado pelo rubro das bocas,
olhos lúbricos, irmãos da noite,
inundo o paladar em colchões de leite de fêmeas coxas.
Nos braços fluidos da noite,
bebo pétalas alucinantes,
deliro com os gestos dionisíacos das mulheres.
Contorno curvas de dunas,
beduíno de cálidas miragens.
Incendeio-me na languidez da lua,
na iluminura das ruas.
Solitário e rebelde,
uivo para as melhores fêmeas,
lobo solerte, hidrófilo animal,
perverso e manso.

COPACABANA

Os ônibus violentam toda noção de olfato.
Grades e alarmes brotam nas contingências.
Copacabana, sintaxe gangrenada.
Quem varre as ruas nada sabe de perfumarias.
Copacabana, plúmbea grinalda,
libélula unicórnia, girassol de pólvora.
Caminho com relógio escondido,
ao lado de policiais, pivetes e camelôs, sob galerias,
entre entulho e canteiros,
sem carro blindado nem colete à prova de bala.
Os policiais reclamam de um vendedor de relógios.
No vai-e-vem dos transeuntes,
na iminência do perigo, veloz atmosfera de chumbo.
Pombos, cachorros e a fauna humana coexistem.
Uma pedra verde reconstitui a natureza.
Copacabana histriônica, voraz-Medusa-querubinha,
Perséfone de rubras entranhas,
megera magnânima, anciã ébria
coroada de morcegos,
bacante, marafona violentada e rediviva!

Na Rua Duvivier renderam à faca uma senhora.
Furtaram dois visitantes de um edifício na Cinco de Julho.
As crianças estão seqüestrando ônibus e fuzilando turistas
(a ninguém convém morrer de fome).
Da Santa Clara ao Leme,
aconteça o que acontecer,
cultivarei essa paixão e essa pedra verde ao fundo da Travessa.
E essa visão de humanidade na entrada do edifício:
a criança branca e o ancião negro conversando,
a lembrança desse dia ensolarado na face dos prédios,
com freios e motores ressoando na avenida.

Copa dos moleques batedores de carteira,
das meninas vadias, doidivanas perseguidas,
dos gringos deslumbrados ante a bunda das crioulas.
Aconteça o que acontecer
– Copa de alarido endógeno –
cultivarei esse desregramento,
comunhão e algazarra,
o ritmo dionisíaco,
anomalia de dissonante
que alardeia beleza e transgressão.
Copa dos namorados que se beijam nos bancos sujos,
violões nas mesas e nos corpos,
recomponho-te na fragmentação do delírio.
Garotas de roupa justíssima acenam para os carros.
Entre Santa Clara e Figueiredo Magalhães,
esperam alguém que tarda...

Copacabana, és a materialização do princípio da incerteza,
sinestesia, ainda que tumulto,
invertebrada esquina de ferocidade.
Nas tuas entranhas, onde jaze o Brasil criança,
esmolando no abismo dos teus espasmos.
A noite caminha com os passantes.
O crioulo passa falando só,
as pernas bambas em ziguezague,
as meninas insinuam convidativos olhares,
o cheiro de peixe hipnotiza os comensais.
Há ondas estampadas no calçadão.
Passam mulheres e meninos famintos
que olham-me através do vidro,
meninos descalços, expulsos do supermercado,
vasculhando sacos de lixo.
Esmola o homem sentado ao chão,
uma criança dorme-lhe ao colo.
Copacabana, quando serás o revés da treva, o revés da farsa?
Villa-Lobos na boca do Túnel?

MANHÃ NO ARPOADOR

De sobre a pedra ver as profusões,
cachos de espuma onde a pedra invade o mar,
os corpos fluidos, flocos de velejação:
seara flamejando rajadas.
Além do rochedo, onde a mão humana talhou simetrias,
o mar precipita seus dínamos,
lança dádivas de majestade.
Das profundezas jorram tesouros por dividir.
(Sonho com sua partilha entre todos os homens).
Em tudo brilha a vertente mineral,
divindade que se despoja do seu centro incomensurável,
fulgura camadas de plumas,
cinge as escarpas,
com o fluxo ondulado que acende um festival,
esvoaça ruínas em semicírculo,
álgida claridade na face de tudo.
Esfuziante espírito flutua na esmaltada superfície.
Caminhos de mistério entre as ilhas – rumor inebriante.
Um luar de nuvem desenha os cânones da vida.
Sob a gradação bruxuleante, candeias alteiam-se
na encosta incendiada.

VITRINE

Na Rua Barata Ribeiro,
o marginal, maltrapilho,
olha a vitrine do “Centro de Estética Canina”.
Dentro da loja, conversam duas moças
e dois cachorros.
Elegantes e perfumados, os animais brincam,
cheirando-se reciprocamente...
No luxo da vidraça,
a loja expõe sabonetes, xampus, berços, banheiras e comidas.
Tudo para cachorros...

EXOTISMO

Na avenida aberta a todos os fenômenos,
aquelas meninas exibem peitos e bundas.
São loucas e charmosas
e oferecem um espetáculo de estética,
um prodígio de sensualidade.
Freneticamente flexíveis, híbridas,
na esquina da Júlio de Castilhos,
andam de um lado ao outro da rua,
bailando insinuantes,
encantadoras e escandalosas,
imperturbáveis ao frio.
Mínimas, as roupas cravadas nas carnes de volúpia.
Se se aproxima um “cidadão honrado”,
elas abrem as túnicas inconsúteis,
mostrando lindos seios
e as cavernas dos sexos sob os biquínis coloridos.
Que festa de erotismo!
Que júbilo na gargalhada da loura,
voz de garoto adolescente,
quebrantando o artifício do instante.
Súbito, as duas mulatas de coxas lisas somem num carro.
Outra, a dos peitos volumosos,
também desaparece nos breus da noite.
Resta a de longos cabelos dourados,
translúcida e solitária,
na esquina da expectativa...

A CIDADE VISTA DE DENTRO DO CARRO

Da Rua Bolívar, pelo Corte do Cantagalo,
vou diretamente à Lagoa.
Passo ao largo da navegação de reflexos:
Santa Margarida Maria ao pé do Rebouças.
As placas indicam Cosme Velho e Zona Norte.
Velocidade no túnel de paredes de carvão:
um arco de luz de repente emerge na parede verde.
Um portal descortina a miríade:
o labirinto, a multidão de carros vazando as avenidas.
O Morro da Viúva entre dois portentos.
Abismo de luz na Baía,
penumbra lírica na Rua da Passagem.
Medito sobre o perfil sociológico da cidade,
mulatinhas fenomenais,
bustos de criança e bundas de mulher,
personificam a invenção genial dos portugueses.
Avenida Niemeyer subindo a colina,
Vidigal e Sheraton: dois pólos nacionais.
São Conrado aos pés da Pedra da Gávea,
prédios de luxo cingidos pela Rocinha.
A favela invade as ruas em trajes mínimos,
à sombra vespertina,
tarde pródiga no humanismo contraditório do hemisfério.
Escadas de concreto alastram-se na montanha,
o Corcovado emoldurado em quadriláteros,
névoa sobre as sutilezas do mar.
Abril trouxe os ventos do sul,
sopro de vida no refúgio da enseada.
O cheiro súbito do mar invade-me as pituitárias.
O Rio é de todos – brilha como o sol.

MAR DE COPACABANA

Maroto mar, ó mar que se estronda
e estruge, atro mar, matreira onda,
lava os farrapos dos indigentes,
lava o pensamento dos dementes.
Mar romântico do meu Brasil,
lava o belo cu do mulheril.
Mar azul de Copacabana,
Mar de Deus, grandeza soberana.
Mais do espírito que da matéria,
flutua sobre a humana miséria,
lúbrico arcanjo fenomenal.
Tu fecundaste o mundo ancestral,
rei da vida terrena e aérea,
portento de poder colossal.

A LIVRARIA

Adentro os umbrais do Edifício Marquês do Herval,
o rito de passagem conduz às dimensões lúdicas.
Desço a espiral de um subterrâneo de luzes,
giram percepções de cristal:
o olhar desvenda iluminuras,
códices de preciosa indústria.
Anticaverna do tempo, flui o rio da memória,
núcleo de referência do mundo.
Nem toda livraria é um pórtico da galáxia, insígnia da vida.
Mas se Leonardo é o patrono,
um gênio conversa com o espírito dos livros
e o acervo suscita viagens insólitas.
Nem toda livraria exalta inexorável fortuna.
Mas se a vitrine é aquarela mística, ignição do estro,
motor geracional da história,
saio pela galeria conduzindo um artefato de plástico,
repleto da prosódia universal.
Se o patrono é Leonardo,
a livraria é ponto cardeal de insônia e êxtase.
Arcádia! Ágora! Acrópole!
No frontispício está escrito:
“Livraria Leonardo Da Vinci.”

ICARAÍ À NOITE

Eis aqui a melhor vista do Brasil:
à noite, à etérea plenitude,
a paisagem abre-se no pálio milagroso.
Na vertigem da miragem,
cenário atrativo e apaixonante,
cultivo esse deslumbramento
(nutrido de iluminações).
Arauto dos pórticos da amplidão,
antes que a grande onda apague meu rastro sobre a areia,
caminho ao largo da beleza.
Sob o galardão de estrelas, almejado prêmio,
espalho a exuberância do meu canto:
a mais alta fortuna pulsa na visão.
Refúgio da neurose coletiva,
o quintal dos idílios me entrega essa colheita:
garotas perfumadas desfilam na calçada,
tranças e quadris à flor do vento.
Antes da dissolução da definitiva noite,
beberei com os alvéolos as essências visuais.
No êxtase mágico do passeio,
meu canto é uma profusão de deleites.
Antes que o tempo me conduza às dimensões que se unificam,
espalho meu canto na policromia do mar.

LEMBRANÇA DE UMA VISITA A ASSIS BRASIL

Numa tarde enfeitiçada, visitei um monge,
austero e manso arauto,
debruçado sobre uma máquina.
Obcecado como quem procura uma relíquia,
um talismã,
despegou o olhar do palheiro dos haveres,
possuído por gênio ou demônio, dir-se-ia.
O alquimista de olhar faiscante conspira contra o tempo
que vigia, do alto de sua torre,
o guardião dos lindes, dos lagares?
Decifra o idioma submerso,
mira miríades de hipocampos,
cintilações de nácar,
de âmbar nalguma praia derelicta?
Não traja estola ou púrpura.
O escriba de todos os tempos,
de nome Assis, ressonância de franciscano,
brasileiro na graça de viver,
veste túnica visionária,
anota fórmulas mágicas:
Quis perguntar-lhe que mistério determina a vida,
a nuvem do tempo cobriu-nos a face
e despertei além do mar.
A Rua Correia Dutra perdera-se na miragem,
melodia que se escuta num instante
e desaparece no ar,
perfume que a noite leva nos quintais da infância.
Visitei Assis Brasil nas alturas de seu refúgio, não de marfim,
mas de um mar que não tem fim,
fluxo e refluxo da palavra,
fonema do sopro da alma.
Havia quebranto e idílio naquele instante.
Estava diante de um sacerdote do mar,
transido pelo cenário de outras tardes,
ao sopro da cinza do poente.

O DISCURSO DE PRÍAPO

Do Leme ao Leblon,
levo meu estandarte anatômico.
É um cântaro que transborda,
obelisco visceral.
Só de ver umas coxas,
irrompe um estorvo sob o meu umbigo,
hirto androceu,
o talo entumecido respira ácida seiva
e tem a anti-sede de expelir,
descarregar o fardo que o incomoda.
Não sei o que fazer com esse rochedo
que se move na direção dos olhos.
Se vejo umas curvas de cintura ou bunda,
logo o artefato acende, de tocaia
e fareja e vigia como um perdigueiro
e tem ânsias de abocanhar,
mas só com o tato e os lábios,
saboreando e mergulhando em deleitoso mar.
Do Largo de São Francisco à Praça XV,
pressurosos sátiros agarram as nádegas das ninfas,
de São Conrado à Barra da Tijuca,
as de lábios-cereja mostram o sexo aos centauros.
E Eros passeia no Leblon, com bacantes desnudas.
Mas de mim afasta-te, donzela!
Tua respiração suscita uma implosão de hormônios,
sufoca-me de ânsias.
O aroma de tuas axilas é um labirinto.
O coração na língua, examino essas filhas do mar,
estrategicamente.
Transborda-me um cântaro, estandarte em fogo.
Ó redomas carnais, voluptuosas!

CLARIVIDÊNCIAS DO ARPOADOR

Recanto onde a vida repousa na pele das águas.
Varanda de onde a fruição anímica,
qual talismã de ágata,
reverbera matizes.
Tórrida delicadeza flui.
Espadas se espraiam nas linhas fúlgidas,
viajam procelosos torvelinhos.
O clarão acende fagulhas em toda vaga,
na espuma o arco-íris se prenuncia.
Florilégios no céu, caminhos imantados de milênios
e o espírito habitante das grotas,
tudo converge no alumbramento,
miragem, chuva de luz, visão astral.
As entonações são minhas na voz do mar.
Súbito, o sol abre um leque, pirâmide tutelar,
colunas etéreas fincadas na profundidade.
Este misterioso templo riscado de gaivotas,
infinito desvelo, gemas do minério colossal,
este portento é o Deus dos meus altares,
domínio do meu cismar,
lívido tesouro em que me afortuno.

Rio, 9/11/1998

PASSEIO ECOLÓGICO AO MORRO DO LEME

Revelo ao mundo a sagração das águas,
a quietude da Baía vista do alpendre ajardinado,
o verdejante flanco das colinas:
grandes rochas envoltas em bosques,
portentosas escarpas aureoladas de nuvens.
Tudo está encantado: ipês, jequitibás e paineiras,
pitangueiras floridas, hálito celeste,
beija-flores, bem-te-vis, ressonâncias inebriantes.
Medito num refúgio de onde as grandezas se desvelam:
Urca, Pão de Açúcar, Corcovado, Pedra da Gávea, Dois Irmãos
e outros prodígios que se perfilam garbosamente,
com postura de deuses antigos.
Deste mirante, Copacabana, mavioso leque,
arqueja, bordada de espumas,
até o istmo onde começa Ipanema.
Momento de êxtase, a visão do mar onipresente.
Tudo está encantado: os sons fantásticos na vegetação,
a procelosa viração das vagas
e este caminho na alameda virente.
A sombra serena, dádiva de andar neste espírito de saúde,
a efusão de aromas:
musgo, relva e folhas que recolho como bálsamos da alma.

RIO ECOLÓGICO

Deixa que prevaleça este orgasmo no vento
e o manso encrespar das ondas,
e o doce relevo de montanhas e as cores do mar.
O espelho de cintilações areja luzes na tarde,
perfumes onipresentes nas plantas,
ouro-vivo sobre os edifícios.
Além das seduções mercantis,
deixa que brotem rubras florações,
racimos de seiva, áurea flora de neblina.
Sejam inflorescências de orquídea
os cabelos das garotas douradas.
Além dos rumores e buzinas,
Copacabana com pedras de seda e grinaldas do mar,
praia de lenitivos, imagens aéreas, desdobrar de sentimento.
Deixa que fluam fulgores de sol prismático
e raízes suspirantes do sexo das águas.
Ipanema, santuário azul,
mistério e gaivotas beijando as águas,
ternuras, florilégios, alegria marítima,
êxtase e antídotos no Jardim de Alá.
Leblon, deleite de esplendor,
deixa que girem vorazes caracóis,
polpas dúcteis de nectáreos ramos,
odor de pescado e fruta na tarde vegetal.
Espuma de brilhos, cristais do verão,
vinhos do oásis, lácteas taças de vida
e a lua deslize, bebendo a claridade do dia.

Rio, dezembro 1990

CRÔNICA ORTODOXA
A Natalício Barroso

Das ruas de Copacabana,
a Leopoldo Miguez tem passarinhos verdes.
Das ruas do Leme,
a Anchieta tem ancoradouros onde aportam os poetas itinerantes.
Depois da chuva, entre arcabouços de aço,
serras perfuradas de túneis,
mansões entre favelas, alquimista pós-moderno,
degusto açaí, o elixir do Pajé e outros ágapes
que a gente saboreia com os olhos:
garotas robustas são a propaganda.
Jamais à sopa de macarrão dos acadêmicos.
No perfil de lâmina do horizonte,
ácido e óxido diluídos em selva e rama: o púbis da cidade!
Troféu de corifeus de Cronos!
Impactado de beleza e violência, entre desvario e sublimidade,
pasmo de sol e vitrines, delirante e contemplativo,
fescenino e monge,
não careço de ir a Pasárgada.
Atravesso a Raimundo Correia
(sem pombas nem males secretos)
entre sanatórios e usinas de lixo.
(No ônibus de cada dia, o assalto e o pão do asfalto.)
Na Santa Clara, estrídulos, turbulências...
Recorro ao poeta Roberto Pontes.
Onde o remédio que cura o tédio?
– Na Farmácia Poesia.
Explodem buzinas, detonam carros,
meninos pedem comida a velhas prostitutas,
meninas de cabelo molhado levam-me os sentidos.
No vento, inocência e malícia,
nos edifícios, farpas de grades,
no acento do ônibus, doces pernas fêmeas,
nas transfigurações da hora, lúdica lubricidade.
Atlânticos priapismos flamejam as salamandras do Flamengo.
Botafogo – pureza e tentação!
Na Rua Alice de aliciantes delícias,
portal de Santa Teresa, a alma machadiana do Cosme Velho.
Largo do Boticário.
Montes de Vênus ao telescópio ginecológico.
Laranjeiras – laranjas de carne.
Gazelas, tigresas: graciosidade e tumulto.
De súbito, fauces de fogo,
a cidade é chumbo e sexo nas curvas letais.
Abismo, vórtice, vertigem.
A cidade tem mandíbulas, manopla monstruosa,
carros perseguindo o rebanho rastejante.
Mas além da redoma opressora de carnaval e tiroteio,
além das idéias pulverizadas dos vampiros de ectoplasma,
de todas as janelas se vê o Cristo de luz.

ITINERÁRIO NÔMADE
Aos tios Afonso e Josberto
Festa de luz no horto da Gávea.
Braços de granito se estendem na imensidão,
os casebres se alastram nas montanhas,
espalmando mãos de concreto na costa azul.
Ilhas emergem além da proliferação urbana,
montes, floresta e prédios dividem o espaço
sob a redoma de opulentas nuvens.
Ponte Rio-Niterói, sólido arco-íris sobre alfombra líquida,
onde barcos eriçam espumosas crinas.
Do alto do Pão de Açúcar,
na interseção da Guanabara,
dois gigantes se miram, exibindo paredões de concreto.
Na amplidão das maravilhas,
o mar de Vinícius ostenta mistérios,
“limando ruivas rochas distantes”.
Céu de fantasmas leitosos de Verlaine,
manchado de horrores místicos por Rimbaud,
o amarelo sedutor do horizonte, semáforo de Deus...
Rua Bolívar, Rua Miguel de Frias,
residências do meu destino, extensões do meu ser,
paradeiros do meu itinerário nômade.
No aconchego do lar,
sinto que o universo tem a dimensão da amizade.
Copacabana, minha expectativa,
futuro auspicioso de êxtases e êxitos!

DIVERTIMENTO NO RIO

Depois de haver vivido como prisioneiro,
andar nas ruas de beleza,
falando português sem a palavra saudade.
No jardim das águas, ler com os olhos do espírito
o livro da civilização brasileira.
No pátio livre do Arpoador,
estrangeiro, vem ver o que é gente!
O azul fluminense,
Glória da Guanabara.
Se os gritos do século agonizam nos túneis,
há festivais em alegro no Rio Sul.
As mulheres compram o verão,
deslizando no Rio que brota as fontes porque vivo
e onde meu compromisso com a liberdade é mais firme,
pois sou o poeta do espaço entre o Pão de Açúcar
e a Cruz Universal do Corcovado.
Vejo-te, Atlântica opulência,
esmeralda vegetal do meu tesouro,
espuma desenhando colares nas ilhas,
Ipanema sorrindo júbilos,
cintilando alegre na planície verde azulada.
Na ribeira do Rio que me recorre, poeta itinerante,
canto a festa do dia sob a sombra de Laranjeiras.

FORTUNA CRÍTICA:

NA TERCEIRA MARGEM DO RIO
Jarbas Júnior

De beleza inexcedível, o carisma do Rio de Janeiro reside no colorido tropical de seus contrastes. Tudo conspira, nesta cidade, a favor da poesia. O edênico de suas esplêndidas paisagens naturais, ao lado da sua imensa alma alegre, agitada, efusiva: Copacabana, Ipanema, Leblon, o litoral mágico, recortado de montanhas e restos da Mata Atlântica, sob o belicoso submundo das favelas de morro. Exercitando a metáfora com rara perícia, o poeta Márcio Catunda, de forma hábil, conseguiu captar estas antíteses líricas e sociais, alternadamente, em poemas de grande plasticidade visual, cenas idílicas de praças, logradouros, ruas antigas, bosques, praias, o Cristo Redentor, os célebres lugares da visita turística, junto com a denúncia crítica, às vezes irônica e angustiada, do paraíso carioca, em seus absurdos, misérias e injustiças. Merece leitura atenta esta experiência poética com perfil de crônica delirante. São belos flagrantes evocativos, depoimentos comovidos, marcados pelo verso livre, com insólitas variações rítmicas. A linguagem sugestiva, de vocabulário rico, explora diversas possibilidades expressivas: ora revela ambientes impregnados de indelével valor afetivo, ora compõe pequenos painéis dramáticos da “urbes” maravilhosa, tocado de estilo próprio, de sensibilidade talentosa.

SUJEITO A OBJETOS
Ricardo Alfaya

Ricardo Ingenito Alfaya é carioca, de 8/08/1953, formado em Direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e em Comunicação Social, Jornalismo pela Facha (Faculdades Integradas Hélio Alonso). Escreve poesia, conto, crônica, resenha, artigo e ensaio. Publica desde 1980, constando em mais de 70 diferentes periódicos do Brasil e do exterior, em muitos com diversos trabalhos. Participa também, com a esposa Amelinda Alves, da Poesia Visual, em exposições nacionais e internacionais, com poemas nos catálogos das mostras, inclusive. Livro solo: Através da Vidraça (Poeco Editores, SP, 1982). Integra 20 antologias, das quais destaca os volumes III, V e VII, de Saciedade dos Poetas Vivos, de Leila Míccolis e Urhacy Faustino (Editora Blocos, RJ, 1993 e 1995); ensaios e poemas em números de Literatura, Revista do Escritor Brasileiro, Brasília, DF, a convite de Nilto Maciel; antologia Globus, org. Giovani Campisi (Edizioni Universum, Trento, Itália, 1999); Antologia Poetrix (Scortecci Editora, SP, 2002), org. Goulart Gomes, Bahia, com 15 tercetos. Prefaciou livros de Joaquim Branco, Ronaldo Cagiano, J. Cardias, Marcia Maia, Elaine Pauvolid, Fabio Rocha e P. J. Ribeiro. Obteve 22 prêmios literários, ressaltando sua inclusão por Leila Míccolis no projeto Brasil 500 Anos de Poesia, seleção dos mais significativos nomes da poesia brasileira, desde suas origens. Citado pelo escritor, doutor em Letras, Joaquim Branco no quadro de Principais Autores, dentre os “poetas e ficcionistas contemporâneos”, na página cinco de Do Pré ao Pós-Moderno, Literatura Brasileira II (Proler, 1998), para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cataguases (FAFIC). Teve o poema “Padaria Rio Doce” escolhido por Affonso Romano de Sant’Anna, único julgador, para integrar CD-ROM com 15 autores, promovido por Kk Blue (Cláudia Penna), a título de prêmio do I Concurso do Site Poemas Azuis, editado no Rio de Janeiro, em dezembro de 2000. Aliás, após 1999, aparece na Internet, tendo mais de 260 trabalhos distribuídos em 34 sites literários, como Blocos Online; Jornal da Poesia; In Versos; PD-Literatura; Balacobaco; Palavreiros; Site do Escritor Rogel Samuel; Nave da Palavra; Officina do Pensamento, Revista A Cigarra (Santo André, SP) e outros. Por fim, desde abril de 1995, edita, com sua esposa, o Nozarte, publicação que, naquele ano, obteve o diploma de Melhor Newsletter, conferido pela IWA (International Writers Association), presidida por Teresinka Pereira, com sede nos EUA. A publicação, a partir de seu 10° número, de 31/12/2001, circula também na Rede, com o nome de Nozarte Informativo Impresso e Eletrônico. Contato: Caixa Postal 62.617 – Rio de Janeiro – RJ CEP 22252-970. E-mail: nozarte@aol.com. Site: http://intermega.globo.com/nozarte/index.htm.


SUJEITO A OBJETOS

Objetos em toda parte
cercam os sujeitos
Pode ser um trapo um troco um troço
ou de tudo isso o oposto: o máximo colosso
Um objeto é um parafuso
a máquina
a engrenagem toda
o sistema inteiro
oculto no sujeito
Um objeto por certo
é meu corpo
quando imóvel morto
Em que momento um ser na fortuna roda
e em trivial mercadoria se transforma?
Diga-me Karl
Responda-me Leibnitz
Digam-me ainda quando ao contrário
o efêmero elemento da terra se levanta
e em arte inesperada se sublima
transformando-se em perene monumento

DAS COISAS E DOS SERES

Um punhado de tinta vira um quadro
Do barro se ergue um homem
enquanto outro cai e vira fera
Num susto uma criança cresce
termina busto de bronze no meio da praça
Um ventilador se modifica em vento
e se não abuso do invento
palavras de nada viram poema de ser
A água endurecida se faz gelo
Se amolece logo se evapora e vai embora
Um bom relógio dá um duro patrão
Uma estátua idolatrada muda em santo
O santo se transforma em marca de sapólio
ou quem sabe até seu nome batize
uma nave para Marte
Da Terra tudo parte

MEDITAÇÃO

A mão insana tateia
procura um objeto

A mente não concebe
o espírito puro

No ocaso da tarde
a tentação serpenteia

Tudo que nos rodeia
é vermelha maçã

LEILÃO A BORDO

A elucidação dos mares e das marés
Ponto
Procura-se um porto
Vírgula
E um salvo-conduto
Pausa
Em troca entregam-se
Dois pontos
Rendas de milagre
e as prendas todas
que à Terra prendem
Barra
Fornecem-se eucaliptos
escapulários
noitadas insones
desejos de ronda
Ponto mais vírgula
Somente não se dá a própria alma
até onde se a entenda e a alcance
Nenhum lance a mais
Jamais
Ponto afinal

ANDANDO A PÉ NUM BAIRRO DO RIO

O que me ensina o barro das coisas
é que as palavras podem construir um jarro
Não apenas para receber as perecíveis flores
ou para em seu fundo se esconderem amores
Mas também para conter as águas dos prantos
que recicladas em cantos poderão refrescar
a sede de virtuais viajantes em dias quentes
O que aprendo com o barro das coisas
é que elas se transformam em berro
em teimosia de resistência ao absurdo
em elogio à razão esquecida do mundo
O que vejo no barro acima das águas
depende do ângulo do ponto que dista
do ânimo que busca nova conquista
Diz-me um graveto não sem certa ironia:
O olho que olha nunca é o mesmo
nem o barro nem o jarro nem a terra
Mas há que saber olhar com o próprio olho

ALÉM DA RAZOÁVEL HORA

Arrumar a casa
a vida
pela vida
afora
Rever cada livro
não acaba
Procurar
novo lugar
na estante madrugada
Quem sabe
revoar
rever uma lembrança
Onde
aquela página perdida
os projetos grandiosos
as frases eloqüentes
os desejos
seus farelos
luminosos?
É preciso limpar o pó

UM CORPO FEITO LOUÇA

– Você é o mais solitário dos seres,
digo ao pingüim em louça petrificado
no pedestal do frigobar sujeito a tudo
Ironicamente exposto ao risco da vida
por certo muito mais do que eu mesmo
talvez esse pingüim ainda me enterre
Comparecerá a meu velório com sua casaca
e ficará por um instante a meu lado
Contemplará meu corpo agora tão louça
quanto tão louça sempre foi o dele mesmo
Fa-lo-á sem dor nem ironia
com seu olhar de pássaro frio e parado
Seguirá depois sua vida
de herança não inventariada
de objeto sem maior importância

ESPANTALHO MEU

Barba por fazer
o dia ralo
o osso magro
madura lida
Na noite à margem
catam-se miudezas
à procura de um “leitmotiv”
para sobreviver:
Metade de um buraco de Lua
cadência de estrela
carícia qualquer
que afaste a carência
Frutos da dura vinha
vida minha
Diga
espantalho meu
um dia será linda?

NU E CRU

Súbito
cai a chuva fina
Rei Lear estou nu
no meio da tarde
Quem disse que a liberdade
se acha na total nudez?
Sinto frio medo arrepio surpresa
e alguma vergonha
Quero roupas
roupas agora
que me agasalhem
que me permitam andar
Sóbrias coloridas brilhantes
bizarras que sejam
Porém roupas
Panos turbantes capas
chapéus sandálias echarpes
camisas com seus botões
Não importa se de linho
seda crepe algodão
Preciso de roupas
fantasias que cubram meu corpo
para me descobrir

FORA DA MOLDURA

Antigo quadro
me mostra um Cervantes magro
enquanto o servente Sancho
caminha ao lado
A magreza de Miguel
de anjo Quixote travestido
faz-me lembrar de outro amigo
perdido
que vi retirante
num fixo mural de Portinari
Sobre nenhum deles
nunca mais ouvi dizer
assim como tampouco sei
para onde o vento deu de levar
a seta que Zenão de Eléia
lançou no ar
flechando o tempo

MULHER-OBJETO

Fantasmática criatura
camisola de seda branca contendo
oxigenada loura lírica de olhos azuis
cílios piscantes em sinais insinuantes
embalada para viagem discreta
no fundo falso secreto do corpo
de borracha inflável mulher
com três perfeitos orifícios
abertas pernas “made in usa”
aceitando todos os cartões de crédito
falando e fazendo papai-e-mamãe
em seis idiomas castiços e mais
Friamente fogosa oferece-se na madrugada
às duas da matina num “site” pornô

VAPORES DE MARÇO

Dia de março
calor e mormaço
poemas se evaporam
No computador suor à solta
lembro-me do chapéu de Lampião
antropofágica e sublime mutação
da carapuça de Napoleão
O primeiro tombou sob o Sol
O segundo se atolou na neve
Para todo chapéu
uma cabeça breve

PORTA-ALMA

Não cabia na cômoda
Nem mesmo no cômodo
Não cabia em si
Não tinha o menor cabimento
Móvel de alças balançantes
contendo objeto invisível
num buraco vazio
no peito
dentro

TABULEIRO DE DRAMAS

O tabuleiro de dramas está cheio
cavaleiros de ouros
valentes caras-de-pau
damas à beira das camas
canastrões à beira do caos
Há vilões de montão
Toneladas de heróis de araque
Muitos escondem a fraqueza nos fraques

LIÇÃO DE ANATOMIA

Miçangas paetês pedrarias
ouros plumas besouros
e outras quinquilharias
Ao centro mulher em mínima tanga
exibe os silicones do peito
a um espelho perplexo
Na mão esquerda didaticamente segura
masculino sexo de plástico moderno
Exata e anatômica reprodução
de um hipotético tamanho família
Perfeita imitação da macia carne
revestimento tão aveludado
quanto a suavíssima pele
eis em sublime mimese
o extraordinário artefato
luxo da luxúria
totem sem tabu
na tela da tevê
De fato
como disse um intelectual italiano
Os “Da Vinci” contemporâneos
estão na informática
e no desenho industrial

ESTOJO DE PRATA

Na vitrine o estojo de prata
Na rua a comida na lata
Os olhos que olham
são os mesmos
As mãos que seguram a lata
ainda não sabem
jamais tocarão no estojo
Repouso
Um riso perdido
um estômago quase cheio
e no peito muito receio
– Não do futuro –
do imediato:
do adulto da polícia do segurança
de alguém sempre disposto
a assustar uma criança
Quinze horas
Alguém entra na loja
procura um faqueiro

SALVEM AS EXCEÇÕES!

Muitos homens de meu tempo
usam terno
mas não são ternos
são tristes somente
Os homens de meu tempo
desconhecem a poesia
que não toque no rádio
Não têm tempo para brinquedo
sobretudo quando têm muitos
Os homens de
meu tempo é dinheiro
são sujeitos sem predicados
verbos mal conjugados
longos períodos
sem oração

PESCADO NAS ÁGUAS DE RIO

A vida não é exatamente qual rio
Embora vá prosseguindo em frente
nem sempre segue reta para o mar
Na maioria das vezes vagueia tonta
tão sem remo sem rumo e sem rota

Se desconhece leme na terra à vista
que dê remédio à tortura e a aprume
que arrume a seta do vago navegar
Para quem o mal deplora, o consolo:
Não existe nau que para sempre dure

RÉQUIEM PARA UM CORPO UTÓPICO

Nem luto
nem luto por esse corpo morto
objeto hipotético e suposto
posto que morto
antes mesmo de nascer
Nem monstro
nem mostro
sua face às sequiosas carpideiras
Não há disponível qualquer amostra
Mande um fax
de conta
Interpelem-se aos escritos de Epicuro
Nem claro
nem obscuro
Encontrado morto ainda na relva
o incorpóreo corpo de um certo futuro

A QUEDA DO SISTEMA

Digite sua senha!
Digite sua senha!
Digite sua senha!

Desista
Máquina infernal!
É privilégio do poeta
O saber
Da secretíssima palavra!

DERRADEIROS PÓS

Época de ouro
de instantâneo ouro em pó
de competição e mesquinharia
Teu caso é insolúvel
Teu ocaso inevitável
Junta todas as quinquilharias
põe no museu tua mobília
Olha para os teus
pede perdão
e dize adeus

ABANDONO AS COISAS DO MUNDO

Entrego-me ao sono
Vozes rostos objetos sem dono
flutuam vagamente
Em um gramado concreto
alguém sintético
semeou um morfema
Do outro lado, telefonema:
– Mudaram as regras do jogo!
Mudaram as regras de novo!
insiste a voz aflita.
Pergunto que jogo que normas que regras
Que novo?
Ninguém sabe de nada
mas quase todos fingem que sábios
Por desfastio anoto seus conselhos
Retorno ao aparelho
na cama adormecido
em ridículo pijama

O HOMEM TEIMA EM ETERNIDADE

Pontas de cinzéis sonham superar a morte
Esperança se esculpe na superfície da pedra
Desenham o alto desejo sobre a rocha dura
no fundo tão frágil quanto do papel a tessitura
Pensamentos se elevam das nervuras da pele
vão lançando criaturas de antimatéria no ar
A escultura espelha do ser a perene tentativa
de obter plena vitória sobre a mentira do nada

MAIS ALTO

Subir ao palco
vertigem
arrepio na espinha
Sob a luz dos refletores
na ponta dos dedos
a folha treme
Ler inflamado
enquanto nos bastidores
a alma desmaia
Dizer num salto
– Mais Alto!
aquilo que ninguém escuta
Exibição pública
do corpo presente
guarda-móvel de multidores
Objeto incandescente que fala

VIGÍLIA

Quando a vida
Tomba
Tomba
Tomba
Pietà
em meus braços
De
caída
Plena
em pleno
cansaço
Oh
não
adormeço
(a morte
espreita
meus passos)

TEMPESTADE CEREBRAL

Este é apenas um poema
escrito não consumível
conquanto lógico-linear mastigável
de teor circunspecto circunscrito
Este é um poema de circo
a rígido rigor adstrito
Palavra podada
enxuta exaurida exumada
medida calculada
Nota “in extremis”
proscrito “post scriptum”
Um objeto na enxurrada

INTERNOTA

Ao
infinito mar
devolvo o punhado de areia
Mão cheia
sob a Lua que espreita
na água deito as letras
que
p
o
e
t
a
m
sobre páginas flutuantes

TÊMPERA

Cresço no fogo
Cresço no ar

O tempo todo
sou forjado
O tempo todo
esculpido

No fim
estátua longínqua
derreterei meu bronze
deixarei a forja
levarei a chama

FORTUNA CRÍTICA:

Estou divulgando um poema de Ricardo Alfaya, do livro Através da Vidraça, de 1982, para mostrar que ele escreve bem desde “tenra idade”.
Leila Míccolis, ao lançar na lista de grupos da Internet “Papiro de Blocos”, em 2/02/2001, o poema “Edição Extraordinária”

Através da Vidraça nos vêm os “closes”, “flashes”, instantâneos que o poeta flagra e fotografa (...)
Eva Creuza de Oliveira, poeta, na apresentação ao livro do autor, de 1982

Amigo, foram muitos lances de genialidade do seu texto, que construíram um lance de dados ao acaso do destino.
Rogel Samuel, Doutor em Letras da UFRJ, autor do Novo Manual da Teoria Literária (Vozes, 2002), em e-mail de 8/12/2002, sobre o ensaio poético: “Dados Soltos num Jogo de Dardos”, no site Blocos Online

Ricardo Alfaya é um poeta que consegue colocar as sutilezas a serviço do bom poema. (...) Além disso, representa o artista atual e está antenado com tudo o que ocorre no mundo poético (...)
Rodrigo de Souza Leão, em “Brindando com Alfaya”, ensaio crítico, publicado no Balacobaco, ano V, n.18, 12/05/2002)

A MEDIDA DO DESERTO
e outros poemas revisitadosTanussi Cardoso

Tanussi Cardoso é carioca, jornalista, advogado, licenciado em inglês. Poeta, contista, crítico literário e letrista. Livros: Desintegração (Ed. do Autor, 1979, RJ), Boca Maldita (Ed. Trote, 1982, RJ), prefácio de Leila Míccolis e Beco com Saídas (Ed. Edicom, 1991, SP), prefácio de Socorro Trindad, Prêmios UBE/RJ e UBE/GO. Seu nome está incluído em diversas antologias, entre elas, Poesia Brasileira Século XX (Revista Dimensão, MG, 1983), org. Guido Bilharinho; Poetas Contemporâneos Brasileiros (Ed. Garatuja, RS, 1990), org. Ademir Bacca; Antologia da Nova Poesia Brasileira (Fundação Rio, 1992), org. Olga Savary; Catálogo da Produção Poética Impressa nos Anos 90 (Blocos, RJ, 1995), org. Leila Míccolis e Urhacy Faustino; Poemas Cariocas (Ibis Libris, RJ, 2000), org. Thereza Christina Rocque da Motta, sendo verbete na Enciclopédia da Literatura Brasileira (RioArte, 2001), org. Rita Moutinho. Em 2000, lançou Viagem em Torno de (Ed. 7Letras, RJ), prefácio de Salgado Maranhão, já em 2ª edição, pelo qual recebeu o Prêmio ALAP de Cultura e o Prêmio Capital Nacional 2000 – Poeta do Ano, do jornal O Capital –SE. Sua poesia tem sido avaliada positivamente pelos maiores críticos, escritores e poetas brasileiros, como Anderson Braga Horta, Caio Porfírio Carneiro, Fernando Py, Gerson Valle, Jomard Muniz de Brito, Jorge Domingos, Luis Augusto Cassas, Luiz Horácio Rodrigues, Marcello Rollemberg, Marcus Vinicius, Newman Sucupira, Nicodemos Sena, Olga Savary, R. Leontino Filho, Ronaldo Cagiano, Silvério da Costa, entre outros. Tem poemas publicados nos EUA, Uruguai, Argentina, Colômbia e Portugal e traduzidos para outros idiomas, sendo detentor de vários prêmios literários, entre eles, 1º lugar no Concurso Pégaso de Poesia, Santos, SP; 1º lugar no Concurso Onde Está o Poeta?, da Hebraica, RJ; 1º lugar no Prêmio SESC-Copacabana de Poesia; 1º lugar no Concurso Nacional do Jornal Poesia Viva, 2000 – Prêmio Gilberto Mendonça Teles, onde venceu, também, como intérprete e 1º lugar no Concurso Internacional de Poesia 2000 – Prêmio Saturnino Paccitti, da Associação de Escritores de Bragança Paulista. Em 2002, ganhou, novamente, um prêmio internacional, 1º lugar no Concurso de Arte, Prosa e Poesia da UBENY (União Brasileira de Escritores, com sede em Nova York), além do 1º lugar no Concurso de Poesias do Tribunal de Justiça, RJ e o 1º lugar no Festival Nacional Petrobras de Poesia, ganhando, igualmente, como intérprete. Seu poema “Miragens” foi publicado em cartão telefônico da Telemar, numa tiragem de 200.000 exemplares. Coordenou o evento cultural Segundas com Arte, na Cobal do Humaitá, RJ, onde se apresentaram Ferreira Gullar, Geraldo Carneiro, Artur da Távola, Moacyr Felix, Armando Freitas Filho, Afonso Felix de Souza, entre outros. Seu trabalho poético foi tema de monografia na UFRJ, apresentado por Márcia Miranda Jayme.

ÓVULO

das sombras
nasce o poema
luz e nudez
: absurdo caracol

SUBSTANTIVOS

faca é faca
pão é pão
fome é fome
amor é amor

estranho desígnio das coisas
de serem exatamente elas
quando as olhamos sem paixão

Boca Maldita, Edições Trote, 1982

FACES

tenho um olho meio torto
certo é que vim aos mortos
para enterrar o meu mundo

quando crescem as macieiras
me vem desejo de pêras e de mares
quando sou deserto
amanheci noturno
ouvindo corujas nos galinheiros
o amor que mato renasce
a cada espelho
camaleão com lua em peixes
pele de escamas e ventos
afogado sem o beijo
choro nuvens e serenos
a linha separando a rede
corta meus pés no trapézio
e nas vezes em que caio
são meus sonhos que adoeço

tenho um morto meio torto
certo é que vim ao mundo
para enterrar o meu olho

O NOME NO ESPELHO

Que nome sou eu?
A quem habito no rosto diário?
A quem respondo quando me pergunto?
Que olhos me adentram?
Que corpo é esta pele
e que ossos esta árvore doce e raivosa?
Quem a mim me lê antes de mim?

Coisa da coisa que não é – eis meu nome.

Dilúvio seco
Filtro sem ar
Fantasma abandonado
Susto
Medo

Que nome sou eu, senão fragmentos?

DESTINO

Suicido-me várias vezes ao dia.
Cama e maca não são um mero anagrama
mas um encontro de marcas.

Beco com Saídas, Edicon, 1991

LIMITES

Costumo falar alto:
esbarro nos silêncios
e espanto a lucidez dos vidros.
(Como um galo
nas manhãs:
indelicado e sem medo.)

Beco com Saídas, Edicon, 1991

DIALÉTICA

Quem desequilibra o trapézio:
a harmonia ou o fio?

Quem desequilibra a vida:
a gargalhada ou o medo?

Quem desequilibra o homem:
a vida ou o trapezista?

Beco com Saídas, Edicon, 1991

DAS DORES DE AMOR

I

O Amor, vário e múltiplo,
diz-me adeus
e ainda assim é belo e verdadeiro.
(Porque ao Amor não cabe o sofrer
dos delírios
mas o cavalgar dos sonhos
e dos beijos.)
O Amor é frágil.
Das borboletas,
carne, pétalas e ossos.
(Mas em seu vôo
é pleno de Deus
no que nele cabe de asas
e desejos.)

II

O Amor é Tudo
Pássaros / Manhãs / Amplidão.
Coragem de negar a Fome
que me tem nas veias.
Voragem / Solidão.

III

O coração importa pouco
ou nada.
Grassam sombras moluscos
peixes em órbita
jardins inverdes.
A vida importa pouco
ou nada.
Facas
girassóis em desesperos.
O mundo importa pouco
ou nada.
Sinos cabalas mandingas
homens em murmúrio
poesia de menos.

IV

Todo amor, no fundo,
é um adeus
um basta
um morto.

V

Contudo, te amo
como se costurasse rendas num bordado
vendo os furos se despregando do pano
alfinetes rasgando a pele
sem ritos
sem ais
sem porvir.

VI

Assim se amam os que se dão:
como rio lento passando
como dor teimando em dormir.

VII

Lanço meu grito
que espanta os bichos
acorda os parasitas
enfurece as chuvas
endurece as primaveras
e o Amor não me vê.
Incendeio barcos
pinto meu rosto nos desertos
engulo o choro das águias
e o Amor não me vê.
No tempo dos recomeços
das uvas das maçãs
o Amor não me vê.

(A quem serve tanta dor?
Por que Deus tem tanto medo?)

VIII

Amo-te, Amor, na cama solta em que me deito.
Colchas, travesseiros, sombras, ungüentos,
líquidos gosmentos, jasmins e feiticeiros.
Habita-me, agora, o Tempo,
no que Ele tem de dureza e de veneno.

O OLHAR AO MEIO

Porque partimos
cegos
não há luz sol estrelas.

Porque seguimos
sós
e
solitários
não há mar sal areia.

Porque fazemos
da dor
osso e oráculo.

Porque temos no
vórtice
do dia
o risco:
a (in)certeza do
amor
:
olho e cisco.

LOUÇA

o coração é óbvio
o amor insólito
vidro
no tocar se quebram

PEQUENO ROTEIRO PARA UM FILME NOIR

1- Um amor. Uma dor. Uma razão.
2- Faca. Jarro caído. Solidão.
3- Um susto. Um corte. Uma ferida.
4- Um corpo. Sangue. Voz contraída.
5- Mão entreaberta. Uma foto. Um sinal.
6- Traição. Morte. Ponto final.

(Ao fundo, uma cantiga de Rampal)

Beco com Saídas, Edicon, 1991

NÓS OU NA CORDA-BAMBA

Entre o Ódio e o Amor
Entre a Violência e a Luta
: o Medo

Entre Deus e o Demônio
Entre a Vida e a Tevê
: o Sonho

Entre o Gesto e o Ato
Entre a Palavra e o Fato
: o Risco

Entre a Fome e a Mesa
Entre a Gaiola e o Pássaro
: o Salto

Entre a Notícia e a Verdade
Entre a Imaginação e o Vento
: a Faca

Entre a Mudez e o Grito
Entre o Desejo e o Sexo
: o Frio

Boca Maldita, Edições Trote, 1982

SETA

O sinal vermelho parou o ônibus
Na hora exata em que o amor passou

O amor passa sempre no sinal vermelho

O AMOR E SEUS BICHOS

I
Erva daninha a germinar fronteiras de ocasos
O amor é o cuspe de Satã no olho de Deus

Enforca criancinhas na barriga das mães
Toca fogo em quarteirões de hospitais
Fala línguas estranhas e diversas
Bate sem dó no crente samurai

Pratica sexo como quem nada ou esquia
É triste demais para ser verdadeiro
É comovente o bastante para se tornar poesia

O amor é ferozmente atroz – fere
É terrível na sua espada garroteadora
Corta pescoços como o sorriso de Osíris
E ironicamente ainda acredita
No pote de ouro aos pés do arco-íris

II
O amor tem a cara cortada como maçã mordida
Arrota azia quando janta suas coxas feito lesmas

O amor é branco em demasia
É feio e se exaure em carnes
Como se comido pelos touros

O amor sangra nas janelas
Como mães matando filhos
Abre as pernas para os corvos
E tem medo
Pede asilo aos anjos barrocos

O amor é bom
E é dócil
E é frágil como um deus
Solidão de hienas rindo de si mesmas

III
Sucessão de demônios, o amor
Cheio de cheiros, tarôs e venenos
Facas, teias, desígnios, segredos
Heranças malditas, signos, medos
Mordidas, suspiros, luz e degredos, o amor.

Relógios batendo em horas erradas
Tatuagens nos corpos sagrados
Súditos infiéis no ar viciado
Desonras, riscos, tabus, pecados
Conclave de bruxas, pus, gnomos, o amor.

Coxas cravadas no coração febril dos santos
Alfinetes nas encruzilhadas de cada mão
Arcano desejo, sangue de ninfas e dragões
Fogo candente, gilete sem corte, porões
Faminto como as últimas moscas do verão, o amor.

Beco com Saídas, Edicon, 1991

PARÁBOLA

Acariciava os pêlos dele como uma juba,
enrolados e belos.
Ao sorrir, os dentes dele sumiam na cara,
maiores.
Gostava de fazer-lhe as unhas,
quebrando tesouras.
Dormia amassada sob o peso do seu corpo,
resfolegante.
Certa vez, amanheceu doída,
cama e lençóis desfeitos.
Aborrecia-se às vezes
mas não entendia as reclamações vizinhas
sobre urros e grunhidos.
Um dia, seu coração rasgou-se:
cacos e sangue no chão.

(A verdade tardia: amara mesmo um leão.)

Beco com Saídas, Edicon, 1991

SANGRIA
ou
DO DISCURSO SOBRE A VALIDADE DA ARTE
para Carlos Willian Leite

Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada.
Graciliano Ramos

Que triste enredo me alucina,
Como se aranhas no rosto?
Como se Deus, em suas vinhas,
Fizesse do amor ouro e engodo?

Que incandescente ardor é esse
Que lambuza mel nos artelhos
E nasce dentes nos pêlos
E cospe pus nos espelhos?

Que sina imensa me atira
Nos deslimites das margens?
Nos precipícios dos cactos?

Trança que na rede ensina:
Arte que na raiz não sangra
é faca desafinada,
é gilete que não espanta,
é flecha que não tem ponta,
é letra escrita nas águas!?

Que espécie de dor me pertence,
Como se náufrago nos ventres?
Como rosas soprando fogo
No olho azul das serpentes?

Que destino intenso me atiça
No canto torto das horas,
Na seda inútil dos muros?
Olho com medo da aurora!
Galo a cantar no escuro?!

UM OUTRO OLHAR

O infinito?
O que o nosso olhar
respira.
O que cabe
na medida da águia.
O sangue cortado
da medula.
O corpo transformado
em asas.

(Mais nada.)

AR
para Afonso Felix de Sousa

poema é raiz
que em silêncio cresce
sopro sem nenhum alarde
como se o ar para existir
precisasse da absoluta urgência da tarde

poema é fome
que a pedra arranha
na lâmina que dita o corte
como se a vida para existir
precisasse da absoluta urgência da morte

poema é feito novelo
olho noturno
desterro
como se a sombra para existir
precisasse da absoluta urgência do espelho

poema é susto
risco de rio lento
como se o poeta para existir
se dissolvesse no vento

ARTAUD

vejo luas a Deus sucumbindo
lobos guardados nos moinhos
zumbidos estilhaçando meus ouvidos
sonhos cortados como vidros

poemas em seus fúnebres destinos
carpideiras chorando em véus e vinhos
guarneço de escárnios meus comigos
doze nós desfaço nos abismos

mas há um riso que iludir não consigo
quando cínica diz a Morte que me estima
como se ama rosas e meninos
feito luz nascendo moscas nos umbigos

CHÃO DE ESTRELAS

Barracão de zinco
Três tiros no peito
Ele jaz estirado
Na vitrola, Silvio Caldas
Emocionado

Beco com Saídas, Edicon, 1991

INFÂNCIA
para Leila Míccolis
pais são seres estranhos
só nos falam de lembranças

: vida é sempre distância

PERDIDA
para João Carneiro, em memória
Masturbando-se, ainda menina,
a mãe cortou-lhe os pulsos.
Tentou, em frente ao espelho,
lamber seu próprio sexo,
exercício constante e doloroso.
A mãe viu. Menina suja.
Construiu uma proteção de ferro
e cresceu sozinha. Olhos-de-janela.
Agora,
aquele homem a chupar-lhe os peitos
e a serrar-lhe o ferro e o sexo.

A mãe morta em pânico.

Boca Maldita, Edições Trote, 1982

A MORTE NO QUARTO
para minha irmã Irayde, em memória

a dor dos olhos da minha irmã
quando a indizível palavra
a comia
lá fora
os dentes da aurora
a chuva nos jardins
o soco da infância
a roda do mundo girava
o mundo brincava de vida
mas a dor da palavra proibida
os olhos da minha irmã
comia

OLENKA
para Olga Savary

alga
magma
magno enigma
matéria mineral
mulher
água

DIÁRIO

É silêncio e teu ombro pesa.

Todos os teus murmúrios são inúteis
– mesmo a tua ida ao teatro.

Teu corpo
pregado numa cruz imaginária
foge de ti
e te acusa da febre que incendeia o quarto.
Os papéis sobre a mesa do trabalho
contam histórias tristes
e as borboletas nos lagos gelados têm mais vida.

É tudo simples: praias, serras, estradas,
carros, engarrafamentos, shoppings, sonhos:
a palavra é simples: a morte é simples:
as luzes dos altares nada queimam:
nos mármores das estátuas
quebramos nossos espelhos.

E tudo teima em te acusar: teu sexo estúpido,
teus amigos imortais, o amor que não consola,
a família nos retratos,
a faca suja na manteiga
que sangra o pão do dia.

Olhas da janela os pombos mirando os milhos;
olhas o namoro nos fios;
enganas teu rosto com tua paz suspeita.

Teu peito te trai. Teu poema te trai. Teu país te trai.
O olho enrugado te trai.
Teu jornal te faz de tolo.
Tuas guerras santas são falsas.
Teu cão te ladra.
Teu gato te arranha.

O sol entra em tua cama
e te cospe no rosto
o ofício de outra manhã
a cumprir.

É silêncio e teu ombro pesa.

CHRÓNOS

O Agora é cisco
Riso de rio seco
O Agora é como um grito

(No Eterno
O Tempo se cria
Cicatriz e visgo)

O Agora é risco
Malabarista no escuro
O Agora não passa de um TIRO

OCO

Tudo é solidão. Silêncio.
Tudo é mistério. Medo.
Mesmo em ebulição
Nascendo as palavras.
Tudo é angústia. Ausência.
Tudo.
Mesmo o poema.
Principalmente o poema.

UM POETA NAS CIDADES
lendo “A Grande Fala do Índio Guarani Perdido na História e Outras Derrotas”
para Affonso Romano de Sant’anna


Neste momento, um poeta está sozinho nas ruas de Nova York.
Caminha nas calçadas de Nova Deli.
Passeia o cansaço pelos gelos nórdicos.
É triste nas esquinas do mundo.
É o cego e seu realejo.
O enforcado, o carrasco, o viúvo, o noivo.
A voz do mudo e seus medos.
Os amantes e seus desejos.
Neste momento, um poeta anda pelas dunas de areias do Saara.
Venta nas folhas da Amazônia.
Chora pelos mares de Espanha.
É faca, corte, bala traiçoeira.
O Espírito do Tempo, os Templos, terços e tendas.

Um poeta sozinho nas ruas do mundo.
Olha as cidades e ouve seus gritos.
Olha as cidades e vê os seus circos.
Olha as cidades e tudo é igual: lodo, verde, temporal.
Olha as cidades e os girassóis se estilhaçam nos sóis amarelos.
Olha as cidades e o corpo é flechado nos vitrais dos mistérios.
Olha as cidades e as janelas abertas no fundo dos quintais.

Olha as cidades e toca em seus muros.
O muro e suas noites
O muro e suas peles
Atrás do muro, o mar
Atrás da noite, o nada
– A Barca da Morte espreita enganosa.

Sozinho nas curvas da vida,
as luas vão e vêm, banhando-o em luz.

Neste momento, um poeta olha as cidades
tentando confortar poemas derramados.
Poemas de sinais trocados.
Poemas que se escrevem nos esgotos.
Entre ternuras, vinhos, auroras,
línguas estranhas beliscam como corvo.
Neste momento, um poeta olha as cidades
e a poesia não expulsa os demônios.
Que texto o orienta?
Como escrever o poema desses dias?
Mas escreve e escreve e escreve
porque não pode evitar desastres.

Um poeta caminha solto pelas ruas do Brasil.
Sob as estrelas tenta desenhar humanidades.

URBANIDADES

O ônibus
vertiginosa serpente foguete nas ruas avião no asfalto
balançando vidas
sobe-e-desce viadutos e o céu é azul lá em cima

Entre uivos, postes, cachorros e frutas
és tu, Cidade boquiaberta, o que engulo

Fiats, jornais, pedregulhos
Fords, avenidas
Brasis, entulhos
Disparados corações
Flechas urbanóides
Luzes piramidais
Pisca-piscas
Inferno de ouvidos

E se vou morrer agora entre os ferros do Maracanã em dia de Fla-Flu
seguro os urubus da estrada faço versos oro pela mãe dos desgraçados abro e fecho os
olhos no coral dos evangélicos e covarde peço perdão pelos pecados se ileso sair vivo dos
frangalhos

O ônibus é o deus dos loucos

Tremo na libido
Óculos voam, roupas, cabelos, vidros estilhaçados
Sangue nos umbigos dos corpos manchados
Rocks, motos, metaleiros, decibéis em suicídios

Penso no amor, em seus dentes, nos girassóis, nas luas, nas sementes
House centers, mictórios, shells
Bandeiras do Divino
Postes, netunos, Chevrolets
Mil neons em meus sentidos
Penso no amor, nas coxas, nas salivas, axilas
Close-ups, bradescos, bob’s passam nas retinas
Penso no amor, nos beijos, nos orgasmos, nas vaginas
Mecânicas, pneus, rodoviárias
Pássaro subjugado, gaiola em movimento
Outdoors, pernas, desodorantes

Revolução diária, camaradas
Make me new, Pound

Pães, feiras, raps, absorventes, sinais

Sustos de uma cidade rápida & mortal
que me faz acreditar em Deus e no amor
até o ponto final

FORTUNA CRÍTICA:

Sua poesia é mesmo da melhor qualidade: densa, criativa, reinventando-se continuamente. Affonso Romano de Sant’anna

Tanussi Cardoso é poeta de linguagem forte, às vezes, contundente. Um canto incisivo. Sua poesia tem força.
Anderson Braga Horta

Poemas fortes, com sotaque pessoal – coisa que vai escasseando no mercado. Sabe o ouro do silêncio e a prata da revelação.
Carlos Nejar

Tua poesia apura os ouvidos do tato.
Fabrício Carpinejar

Tanussi tem algo de Baudelaire. O melhor. O lirismo crítico, a ausência de sentimentalismo barato e o contato com os mitos. Tanussi não é um poeta comum. Seu talento é uma evidência. Tanussi é um poeta de verdade.
Luiz Horácio Rodrigues

Viagem em Torno de é um impacto de beleza e profundidade, um grande livro de poesia, talvez o maior que nos últimos tempos apareceu em terras brasileiras. Num país como o Brasil, onde sucesso e vulgaridade quase sempre andam juntos, é possível que Tanussi Cardoso, um poeta magnífico, continue desconhecido do grande público. Afinal, o que é a fama?
Nicodemos Sena

Viagem em Torno de é belíssimo. É um dos mais belos e tocantes que li nos últimos tempos, principalmente pela dimensão humana de sua poesia, pela densidade existencial que ela nos passa e, sobretudo, pela rigorosa verdade poética que os versos nos transmitem. Obra de espantosa qualidade poética.
R. Leontino Filho

PANDORA
Thereza Christina Rocque da Motta

Quem a essa hora
bate à porta?
Decerto Pandora
e sua caixa.

Decerto Pandora
e sua caixa
de esperanças repleta.


Luiz Ruffato,
As máscaras singulares

Thereza Christina Rocque da Motta nasceu em São Paulo, em 10/07/1957, é editora, tradutora, professora de inglês e advogada. Foi chefe de pesquisa brasileira do Guinness Book, o Livro dos Recordes (Editora Três, 1992). Fundou a Ibis Libris Editores, no Rio de Janeiro, em agosto de 2000.
Em 1980, fundou o Grupo POECO-SÓ POESIA e lançou as antologias Ensaio I, II, III, IV e V. Publicou Relógio de Sol (1980), Papel Arroz (1981) em parceria com João Ricardo Scortecci de Paula e Celso de Alencar e, individualmente, Joio & trigo (Poeco, 1982), Areal (Dolfin e Geração Editorial, 1995), Sabbath (Blocos, 1998), Alba (Ibis Libris, 2001), Chiaroscuro – Poems in the Dark (Ibis Libris, 2002), em inglês, Lilases / Lilacs (Ibis Libris, 2003, ed. bilíngüe) e o pôster-poema Décima Lua (1983). Participou da antologia de poesia erótica Carne Viva (Anima, 1984) e da Antologia da Nova Poesia Brasileira (Fundação RioArte, 1992), organizadas por Olga Savary; Contra Lamúria (Edições Pindaíba, 1994). Fez parte da Ponte Poética (Ed. Sette Letras, 1995), idealizada por Claufe Rodrigues e Claudio Willer, com poetas do Rio e São Paulo, entre eles, Alexei Bueno, Armando Freitas Filho, Chacal, Denise Emmer, Eduardo Alves da Costa, Geraldinho Carneiro, Ivan Junqueira, Mano Melo, Roberto Bicelli e Roberto Piva, e das leituras do Poesia 96 e 97, promovidas pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; Intimidades Tranvistas (Escrituras, 1997), 80 pinturas de Valdir Rocha e poemas, entre eles, de Eunice Arruda, Hamilton Faria, Helena Armond, Jorge Mautner, Neide Archanjo, Olga Savary, Raimundo Gadelha, Raquel Naveira, Renata Pallottini e Renato Gonda; Antologia de Poesia Contemporânea Brasileira (Alma Azul, Portugal, 2000), organizada por Álvaro Alves de Faria e Poemas Cariocas (Ibis Libris, 2000), além de ter poemas publicados na revista Poesia Sempre, no. 14, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em agosto de 2001.
Tem ainda, inéditos, Odysseus & O livro de Pandora, Lázuli, Amor e asa, Marco Polo & A Princesa Azul, Colombo, A mulher nua, Olhar flamingo, Folias, Estio / The Desert Crossing, Let’s (em inglês), Pares / Pairs (bilíngüe), Shell to the Sea (poemas vertidos), Walk in Beauty, Uno e Futebol e mais nada – Um time de poemas. Trabalhou como tradutora para as editoras Rosa dos Tempos (1992), Lacerda (2000) e Martins Fontes (2001/2003).
Vive desde 1999 no Rio de Janeiro, onde participa de leituras de poesia, entre elas, no ConVerso no Café, com o grupo Poesia Simplesmente, com o qual participa do Festival Carioca de Poesia, no Teatro Gláucio Gill, em Copacabana, desde 1999. Coordena o evento quinzenal Ponte de Versos, desde setembro de 2000, juntamente com Ricardo Ruiz e Gilson Maurity, criado em julho de 1999 na Livraria Ponte de Tábuas, no Jardim Botânico, que hoje se realiza no Barteliê, em Ipanema. Participou, em agosto de 2000, do II Encontro Internacional de Escritoras, em Rosário, Argentina e da 54th e 55th Conference on World Affairs, na Universidade do Colorado, em Boulder, Colorado, como palestrante convidada, em abril de 2002 e 2003, quando fez uma leitura de seus poemas em inglês e português, acompanhada por Oscar Castro Neves e Don Grusin. Consta da nova edição da Enciclopédia de Literatura Brasileira (Global Editora, 2001), de Afrânio Coutinho, revista, ampliada e atualizada por Rita Moutinho e Graça Coutinho e do Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras (Escrituras, 2002), organizado por Nelly Novaes Coelho. Membro e diretora da REBRA (Rede Brasileira de Escritoras) desde1999 e da LIBRE (Liga Brasileira de Editoras), a partir de 2003.

INGRID

Meu bem,
me chama de Humphrey Bogart
Tanussi Cardoso
Meu amor
me chama de Ingrid Bergman
que eu volto à Casablanca
arranco teu sobretudo
jogo fora teu chapéu de gângster
e te levo pra Paris
até as margens do Sena
pra ver a Notre Dame
na Ilha de São Luiz!
Te farei tanto carinho
de fazer inveja a qualquer
Lauren Bacall!
Me chame de sua Ingrid
que dançarei para você
o cancã de Montmatre
e o Folies Bergère na Praça Pigalle.
Depois me leve em seu Chevrolet bacana
até a Riviera.
Vamos gastar nosso tempo
dando outro fim pra nossa história.
Mas, se de tudo, não der certo,
lembre-se,
nós sempre teremos Paris!

Ponte de Tábuas, Jardim Botânico, 7/12/1999

Amor e Asa

De deserto, de nadas me mantenho,
e os dias claros são, em ti, esfinges.

Iacyr Anderson Freitas,
Mirante

1.

Te ouvi, palavra,
sôfrega sobre meu alimento.

Te transformo, aguda,
no revés do sonho
de outra tessitura.

Te empunho, lume,
fonte feita de asa
e féria,
a casca a romper o fruto
(carne sob o invólucro da perda).

Nada dito ou feito,
vaguei sob sombras,
oculta.

Letras & Expressões, Ipanema, 9/04/1999

2.

Escuta:
não me vês plantada.
Teu inútil ser
e tua inútil anatomia.
Me visitaste,
anêmona ceifada,
os punhos cerrados
sobre o catre de pedra.
Sou frágil
têmpera e fauna,
o rubor das faces
a tomar-me a alma.

Letras & Expressões, Ipanema, 23/04/1999

FÁBULA
essa mistura de lágrima e corpos
se despedindo longamente
Afonso Henriques Neto,
Ser infinitas palavras

1.

Espera
que murmuro tua fábula
asa de sonho cismada
coisa de breu escondida
um salto no escuro
tua vida
tua vasta fala
teu sono.
Partes
como o Anunciado.
Te espero
voltar.

2.

Já não tenho mais essa fala de infinitas cenas mudas
um paraíso novo
um caminho de árvores nas nuvens.
Risca teu rosto o destino.
Empresta teu horizonte comum à vaga
que te lava e purifica.

3.

Posso ser tua amiga.
Não me afasto de ti nem por um olhar.
Rompi teu silêncio e te ouvi,
o primeiro som, tremor de afagos.
Temo por ti.
Tua beleza é pálida e assombrosa.

Gávea, 7/06/2001 – 20h25/20h55

A ESPERA
(O mundo é feito
de esperas
inconclusas.)

Marco Lucchesi,
Bizâncio

És o que foste
a um tempo
e só.
És infinita miragem
do incontido.
A solitária relva
abandono extremo de si
espera ser e nunca é.

Te ouço
na hora clara
em que te levantas e partes
a sede que nunca finda
a lágrima que não seca.
Me devolves a fome que eu não tinha.
A voragem
do turbilhão
em secas planuras.

Nada há a sofrer
que já não tenhamos concebido.
A vida é larga em tuas mãos
e mais se estende
por estares nela.

26/08/2001 – 3h05

CHAMA

Qual seja a tua chama,
aquece-te nela.
Teu vórtice, olvido,
a vida escavada,
águas passadas e incertas,
vaga imensa e última.
Ouve a sofreguidão das mãos,
ríspidos feixes
a colher os molhes,
a chave perdida,
frio toque de adeus.
Qual forem tuas palavras, ora.
O ritual temporal
e oblíquo,
corte transversal
e longo.
Tua relíquia carmim
e pura.

26/08/2001 – 3h44

NARCISO

Te amo cego de vaidade
narcísico
a mirar o rio que corre
destemperado.
Te amo na têmpera
única de uma tela ocre
vida que flui estreita
por veias contidas.

Te amo antes da palavra.
Nó atado e desdito.
Te visto pelo avesso
e transpiro tua pele.

Amo a simetria de teu canto
a voz cava
o olho vaso
eu seminua
eqüidistante de tua penumbra óssea
a força de tuas mãos
sobre meu peito.

Afunda em mim
e em minhas águas.
Deita as margens além das bordas.
Cose às coisas as minhas falas.
Embebe de vinho o pão antigo.

Serei a seca nuvem
sobre o árido horizonte
a viver de passar
e nunca ser.

30/08/01 – 21h40/23h55

PRIMEIRA HORA
para Jorge Ventura

Verás como verter palavras.
Escolherás as horas
e beberás toda vez
a morte
em pequenos goles.

Não, não terás dúvidas.
Mais uma vez estarás só,
tu e tua estatura, como quem
aprende a altura para saltá-la.

O verso de tuas mãos te dói,
o alentado peso de tuas cicatrizes.

És quem soubeste ser.
Procura teu longo espelho.

Nada restará de ti,
então, começa agora
a descartar teu peso.

14/11/2001 – 19h30

REVERSO
Escolhe o teu amor.
Renata Pallottini, Um calafrio diário

Terei teu corpo
– a fina casca de teu tormento –
e terás me consumido até o último frêmito.

Te sorvo as têmporas úmidas
e estreito teus pulsos entre meus dedos
– faço-te sangrar teu desejo escarpado e íngreme.

Impregna-me com tua voz.
Deita-me em teus vazios estreitos,
tua fome cercada de segredos.

Sou tua vida.
Tua fala.
És, ao reverso,
a alma que procuro.

Tenha-me, porque sou breve.

14/11/2001 – 20h00

Olhar Flamingo


BLOOMSDAY HOJE
para Sérgio Gerônimo e Gladis Lacerda

Acordei com ventos de Portugal no rosto.
A brisa era marinha
e com certeza havia caravelas dentro.
Penso em manhãs de Lisboa,
onde o Castelo de São Jorge pousa além –
a Noiva Branca, a Lisboa mourisca,
cidade em meio à névoa a cobri-la por inteiro.
E vejo que o dia é único,
16 de junho, Bloomsday,
mergulhado em Irish mists,
acalentado e brando,
cheio de respostas e perguntas.
Yes! Por que não?
Somos breves no amanhecer de sempre,
as mesmas quilhas a cortar o mar.
E, por isso, ainda podemos abrir as janelas
sobre o oceano e avançar
por todas as águas, todas as marés,
todos os movimentos líquidos do nosso corpo.
Vem e avança.
Nunca será tarde.
Nunca será tão tarde que não possamos
vir a ser, mesmo por último.

Amor não conhece arrependimento.

Copacabana, 16/06/2001 – 13h26

LIBERTA POESIA
para Claudio Willer e Pedro Lage

Sento-me para ouvir Murilo.
E seu odor de primavera me invade.
Suas faces são múltiplas, todas a mirar o caos.
Encontro-o, olhos crispados,
a indagar-se a poesia que o inunda.
Seu rosto em Portinari mira o infinito.
Seu olhar de abismo, universal,
lábios firmes, circunspectos.
Perplexos.
Seus tons de azul e cinza,
casas brancas e ocres misturadas,
espalham-se pela cidade antiga,
sua voz não mais falada, mas ouvida.
Ouço Murilo falando.
Séquito de poemas, manhãs eólicas,
fósforos acesos na penumbra,
umbrais de esperas,
oco das mãos preenchido.

Falam contigo Nery, Tristão, Jorge de Lima.
Em nenhum tempo estiveste ausente.
És ainda Murilo, o profundo,
o humano, apocalíptico,
místico e transcendental.
És o Murilo dos homens,
o que habita a vida e a morte,
o flagelado, o esquecido, o relembrado.
Tudo em ti encerra o efêmero.
E, no efêmero de tudo, és permanente.
Volta teus olhos para mim
e me deixa entrar em teu mundo escarlate.
O poeta retratado e belo.
Como são belos teus olhos cerrados!
E contra a paisagem,
Guignard te aproxima de nós.
Poesia irrepetível, poeta cósmico e ancestral,
habitas com os serafins os sonhos
e as cabeças dos homens.
Amo em ti o que procuro.
A treva e a luz que se misturam.
Lodo e água para os mais belos lírios.
Tuas mãos cavas,
a vida póstuma e larga,
tudo feito de esgueiramento e palavra,
tudo posto,
tudo deixado ao acaso.

Ouço Murilo e ele me fala.
Sou pequena em suas mãos de gigante.
O gigantesco ser dos poemas translúcidos,
diamante em meio à tormenta.

Tudo cabe na lembrança do agora.
Te temos com certezas e horas.
Antes foste o coro dos anjos,
hoje, a memória de tua voz.
Irmão impossível,
entrego-me a ti e escondo meu rosto.
Tua voz celestial me toma nos braços
e me faz entender o que nunca houve.
Tua música é um contentamento estranho.
As folhas bailam inaudíveis.
Sem mais manhãs, sem tragédias tardias,
aguardamos mais uma vez o fim do mundo.

Rio, 31/10/ 2001 – 12h31

OLHAR FLAMINGO
para Oscar Niemeyer

O mar sempre
contornado pela moldura
da janela aberta
entre o velho horizonte
e a antiga arquitetura.
Almandrade

Que arquitetura arqueou teu braço,
abraço inútil de toda forma lassa,
véu sobre véu, se despedindo,
o horizonte ainda a mirar teu rosto,
a moldura vazada de teus traços frouxos?

Risca no papel o ritmo,poesia de pó e giz,
concreto arco de teu concreto acerto,
poeta do aço, estilete em riste,
onde deixaste teu perfil adunco?

Nada te assombra, não és maisnovo.
Tuas janelas panorâmicas te olham:
estás próximo de teus próprios filhos.

Sou eu quem te visita e escuta.
Vem e me adorna os olhos,
tira de mim teu segredo
– molde oco de tua vastidão antiga.

Dobra a folha do desenho e guarda-a.

Estaremos em teu futuro. 25/11/2001 – 5h15

O FIM DA ESPERA
para Maria Cecília Marques, em memória

Agora
pertences à beleza
anterior às coisas.

Estás diante
do silêncio das palavras
sem precisar dizê-las.

Pertences à manhã
mesmo indivisa
como se existisses
antes.

Pois nada é
possível
até o fim da espera.

13/12/2001 – 2h58

ETERNIDADE
Toda palavra é uma semente.
Raduan Nassar, Lavoura Arcaica

Em um instante, a eternidade.
O corpo, a sombra na parede,
as brancas cortinas,
a mesa posta de ontem
e o silêncio da manhã em tudo.

A janela entrecorta a paisagem,
fresta verde,
céu turvo,
pequenas flores amarelas
pontilhando as margens.

Os sentidos em vertigem,
seca casca de minha memória,
mãos sobre o charco atemporal.

O fogo, lamparina,
tecido de luz sôfrega,
a verdade colhida no fruto amargo.

Diante de nós, o Insabido.
E o tempo pousa
escasso,
pão raro das horas mortas.

Em um instante, a eternidade parte.

Botafogo, 23/12/2001 – 12h28

Folias

Te amo antes de saber que te amava.
Breve anunciação, Alba

O AUSENTE

És mais belo
imóvel,
mas se te moves
exalas teu odor de carne.
Fremes
e tua mão toca
o longo corpo da noite.
Logo a manhã irrompe
as tênues faces
que te distanciam
como verbo
ausente e dócil.
Nada se move
e só tu respiras.

Leblon, 5/02/2002 – 3h00

DORES DAS NOITES
para Tavinho Teixeira

I

Teu repente me atravessa o verso
lança foice espada cutelo.

Em teu verso se espalha
o mel que fabricas no escuro
favos de lua precipitada sobre os lagos.

Mordes os lábios e me contas
teus prazeres, teus deleites,
as dores perdidas nas noites,
tua voz que grita,
sussurro de tua fala,
olhos imóveis,
te esqueces ao relento,
porejando o orvalho
de teus jardins maravilhados.

II

Desces ao inferno de Dante,
Beatriz não te acompanha. Estás só.

Teu descaminho te ocupa as entranhas,
o labirinto de Minos,
cabelos de serpentes,
o olhar no espelho petrificado.

23/02/2002 – 22h04

ÉDIPO MENINO
para Tavinho Teixeira, novamente

Sem o colo de tua mãe,
vives a apascentar ovelhas,
refúgio de tua alma.

Sem oráculos que te amedrontem,
vês teu rosto no lago,
flutuando na superfície do sonho.

Sem estradas que te levem,
ficas à espera do reino,
tua casa, côncavo desespero,
vigília de tua sombra, esteio.

Antes não se cumprisse o destino.

24/02/2002 – 19h02


MAIS AMOR
O máximo de amor cabe
em suas mínimas possibilidades.


Há mais amor embaixo de tuas unhas
do que em toda terra lavrada.
Há mais amor nos beijos que não dás,
do que em todas as palavras que escrevemos um ao outro.

12/03/2002 – 18h41


POEMA DE LUA CHEIA

Molho as mãos nas águas do rio,
sinto o arrepio das gotas em meus dedos
e lembro de outros dias menos lentos.

Ó Heráclito, em qual dos teus rios devo banhar-me?*

Rio de mil correntezas, onde o mar, que me aguarda?

26/05/2002 – 2h43/15h19 – * Tavinho Teixeira

Pares

Beijo o belo que és.
Belo, Alba

A HORA

Te visito hora pura
te rondo à beira do precipício

me movo
me visto ao avesso

atravesso
o deserto a vez imprecisa

oro minhas preces maduras

derramo
as gotas que me sobram

fenecem
noite e dia

porque tudo que é incerto
estremece.

11/12/2001 – 4h33

ODE AO OCASO
para Christovam Jacques de Chevalier
Construo uma ode para teus pequenos risos

a curva de teu ombro
a pele fina

contorno maleável
incandescente

o verso a porejar imagens
a vida posta em tuas mãos
em viagem.

Não resisto outra vez
construir teu lábio

a floresta espessa de teu pensamento
a nau circunscrevendo a ilha

a foz de tua garganta
vertigem

a noite enrubescida em tuas
clarabóias descobertas

a passar os dias a navegar as horas,
doce tempo de tua voz silente,

véu de ocaso e vastas vidas.

10/05/02 – 16h15

COMUNHÃO
para Roberto

Te ergui,
em solilóquio,

fausto, imantado relevo,
veios de altares e silêncios,

cosmos em volta de teus dedos,
lúdico caos em louvor,
flamas que orbitam,

pequenos trapézios
circunflexos,
mandalas múltiplas,

vácuos onde precipitam
horas – dízimos, palavras
suspensas.

Ergo-te em cálice
e em ti cabem milênios.

27/06/02 – 23h55

A ETERNIDADE DO HOJE
A literatura, como toda arte,
é uma confissão
de que a vida não basta.
Fernando Pessoa

Esquece
a tarde, o dia,
a mó,
a vida sonolenta,
a urgência de adiamentos,
natureza recortada em álbuns
de fotografia.
Esquece o sortilégio,
a guerra, porquê fazemos
tudo e deixamos para mais tarde.
Tudo é escasso e precário,
como a docilidade da esfera.
Não há poesia para o nada.
Só para o que contemos
em excesso.

11/07/2002 – 23h54

EMUDECIDOS
para Claudio

Porque em amores
não somos eternos,
a vida é sempre
celebrada
em vãos perenes
de esperados dias
como se tudo acontecesse
só uma vez.

Reentramos as mesmas
florestas, atravessamos
arcos e pontes,
o musgo descendo
a pedra, a água
descendo o rio.

Vivemos como peixes
que não respiram,
asfixia de palavras
incontidas.

Por sermos
impermanentes,
encontramo-nos
na liquidez dos dias,
a flutuar os rios
na tormenta fluida
de escamas –
emudecidos.

4/11/2002 – 01h00

POEMA
para Cristina Terra

Não estamos próximos
e não respiramos.
Fóssil incrustado na pedra.
Luz, mais luz,envelhecemos.

Corais estreitam-se nas ondas,
vemos a espuma coalhar o horizonte
sem nuvens.

Mergulhamos a folha na água,
as palavras jorram.

Cerro
os olhos para reter
o poema.

19/12/2002 – 00h24

HÁ DIAS QUE PASSAM INTEIROS

Há dias que passam inteiros,
despindo-nos os olhos de véus,
voltando-nos para janelas abertas sobre a paisagem
e, ao final da tarde, o silêncio ocupou os ocos das árvores,
susteve as pedras antes da queda,
deslizou os mares sobre o fundo dos oceanos
e nos deixou à beira da imensa noite que nos envolve.
Há dias que passam sem que seja dito
o que tanto esperamos.
E por isso passa, para estarmos de novo à espera,
sempre que nos voltamos a ele,
toda vez que amanhecemos.

29/05/2003 – 2h58

FORTUNA CRÍTICA:

En Areal, p. 27, dices: Almas se entendem / e corpos se entendem melhor, y eso me recordó a Manuel Bandeira (lo cito por mi traducción, pues no tengo el original a la vista): Deja que tu cuerpo se entienda con outro cuerpo. Los cuerpos son comunicables. Las almas, nó. Este encuentro no es una reproducción: es el tratamiento de un mismo tema, porque como bien dijo el español Antonio Machado, “un poeta es mil poetas”. Los temas poéticos son comunes, y en ocasiones son comunes también los modos de expresar la realidade, y así, cuando hablas de “o líquido escuro e espesso”, em Sabbath, me trajiste el recuerdo de nuestro Carlos Drummond: E vejo o fio oleoso que escorre y a vida é gorda, oleosa, mortal. Te encuentras, por tanto, com dos poetas. ¡Y qué poetas!
Manuel Graña Etcheverry, Deán Funes, Argentina, in Joio & trigo, 3a edição, 2003

Joio & trigo, coexistindo no mesmo livro, são opostos que se complementam, aspectos da mesma totalidade, como a temática do órfico e do dionisíaco, de Eros e Tânatos, da descida ao domínio dos mortos e da celebração orgiástica da liberdade. (...) Temos todo tempo que precisamos, ou seja, uma anulação do tempo, um “outro” tempo, circular, onde nada é irreversível e tudo que era pode voltar a ser. O tema do tempo circular, da volta às origens e do retorno do que já era, comparece em várias passagens: aproximam-se as horas/e retornam sobre si mesmas e então trago-te de volta ao que eras, pois temos tempo regressivo e tenho memória de tudo.
Claudio Willer, São Paulo, in Joio & trigo, 1982

Diz a poeta, em Sabbath: De fato/ o que sei/não importa./ Importa/ o que ainda não sei. Assim é que o poeta parece destinado a salvar o real, o real que está nos sonhando. (...) Nesta poesia, descobre-se o vigor das palavras, imagens, oxímoros, metáforas, formulações, ritmos, fórmulas, acontecimentos da alma, coração e mente, figuras da linguagem altaneira a nos comover, nos fazer pensar e sem as quais nosso mundo seria mais vazio e pobre.
Olga Savary, Rio de Janeiro, in Joio & trigo, 3a edição, 2003

Para ela, poesia é vocação, não um destino. É seu modo de viver, nunca uma escolha. É sua maneira de ser no mundo, nada mais que isso. Desse modo, sua poesia tem, na serenidade e na simetria que a regulam, a dose certa da loucura humana e a exata medida da paixão divina.
Luiz Carlos Lisboa, Princeton, N.J., in Alba, 2001

Alba lembra aquelas auroras boreais que duram a eternidade inteira e têm o brilho fugaz da vida. (...) Luz e calor, sobretudo fulgor, resultam da leitura dos poemas deste livro. (...) Poesia de bacante e papisa, santa e prostituta, fêmea e anjo. Água de cântaro rolando pelas sarjetas. Suja de vida, mas repleta de etéreo.
José Nêumanne Pinto, São Paulo, in Alba, 2001

Hoje reli teu poema e me emocionei. De associação a associação, fui a Tomás Antônio Gonzaga, Drummond, Fernando Mendes Viana e fiquei pensando nesse tesouro da poesia que os poetas vão acumulando com suas vozes novas dizendo as velhas coisas eternas.
Astrid Cabral, Rio de Janeiro, in Lilacs/Lilases, 2003